segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Almodoors

Por entre portas cerradas
A vida passa sorrateira
Desviando mente adentro
Em duas crianças,
Adolescentes
Ou adultos,
Vagando quase evasiva
Até seu rompante
E, depois, a calmaria.
A vida de portas fechadas,
Aquela que trespassa a razão,
Aquela que ferve num turbilhão
Inusitado e imaculado,
Aquela vida não te compete conhecer.
Importa saber que seu jeito
Já desde a pequena infância,
Pela puberdade
Até o alvorecer
Tem como característica
Fechar a porta.
Portas inocentes,
Incandescentes
Ou consequentes:
Feche a porta e esqueça
Para a vida passar.

Cisne Negro

Não é todo ano que tenho a oportunidade de assistir uma nova obra de um de meus diretores preferidos, muito menos uma reconhecida obra prima, digna de todos os elogios que vem recebendo na temporada. Estou falando do longa-metragem Black Swan, de Darren Aronofsky, diretor de grandes clássicos do cinema contemporâneo, como Pi (1998) e Requiem for a dream (2000). O filme foi louvado pela crítica, e especial destaque deve ser dado à atuação de sua protagonista Natalie Portman, no papel de Nina Sayers, que faturou inúmeros prêmios por sua performance, entre eles o Oscar de melhor atriz.
Black Swan não é, como descreveu seu próprio diretor, uma história essencialmente realista, mas antes de tudo um conto do embate entre luz e trevas que a tanto fascina a humanidade. A trama, que parece desenrolar-se numa eterna crescença emotiva, é bem típica de Aronofsky, com todas suas subjetividades, mensagens subliminares e detalhes psicológicos que enlaçam o espectador atento, mas podem facilmente cair em confusão. A narrativa soa como uma sufocante ascensão, que devora o público com suas jogadas de suspense e as pequenas mutilações físicas sofridas por Nina, forçando o espectador a uma sensação de "estar na pele da protagonista".
Nina Sayers é uma bailarina novaiorquina de uma prestigiosa companhia de dança. Sonha em ter o mais importante papel na próxima apresentação, uma releitura do "Lago dos Cisnes" de Tchaikovsky, como Rainha Cisne. A trama do filme gira em torno da tentativa de incorporar as duas facetas de sua personagem numa mesma performance, ao mesmo tempo em que luta com seus próprios demônios e descobre outro lado de sua personalidade.
A história traça um claro paralelo com a obra de Tchaikovsky (a trilha sonora, por exemplo, é inspirada nas músicas da peça), e talvez por isso beire o clichê. Mas isto já é prontamente anunciado no próprio filme, quando, ao declarar a escalação de uma nova protagonista, o diretor da academia, Thomas Leroy (Vincent Cassel), diz estar ciente da obviedade do espetáculo, mas expressa seu desejo de realizar uma releitura da obra. Assim, desde o princípio vemos traços do confronto entre os cisnes branco e negro na personalidade de Nina (desculpe se dou a impressão de um spoiler, mas este cisma na mente da personagem é nítido quase desde a primeira cena).
Contudo, Sayers parece não conseguir auferir as características do obscuro cisne negro. Sua interpretação é metódica, mecânica ou mesmo frígida (usando as palavras de Leroy). Thomas tenta extrair de sua bailarina a liberdade e incandescência deste lado sombrio da personagem, que ele diz saber existir nela. De fato existia, mas num grau de obscuridade digno do próprio cisne negro. Inspirada em seus modelos de perfeição e sensualidade, em especial Beth MacIntyre (Winona Ryder), a antiga estrela da companhia que está indo em direção a uma aposentadoria forçada, como ideal relacionado ao cisne branco (Nina rouba pequenos artefatos de seu camarim; esta, porém, não é uma figura tão intensa, já que, como disse Leroy, o cisne branco não representava um problema para Nina), e Lily (Mila Kunis), uma recém-chegada bailarina, como símbolo do cisne negro. Esta última merece atenção especial.
É interessante notar que ao longo do filme existem duas Mila Kunis: Lily, a bailarina amiga/inimiga de Nina, que tenta tratar com gentileza a nova estrela da companhia ao mesmo tempo em que, de certa forma, inveja sua posição recém-adquirida de estrela, e o cisne negro, figura de inspiração criada pela imaginação de Nina como o ideal daquilo que Leroy deseja que ela incorpore em sua apresentação. Podemos identificar aqui o discurso filosófico que jaz subjacente às histórias, tanto da peça quanto do filme: a busca pela perfeição. A personagem de Natalie Portman possui uma noção de perfeição técnica e exterior que é logo refutada no filme, forçando-a a partir em busca de uma nova vertente do conceito: a perfeição interior, digamos; o sentimento. Neste sentido a mensagem do filme é um tanto quanto metafísica: perfeito é o sentimento mais puro e completo.
Ao mesmo tempo temos duas grandes influências sobre Nina: sua mãe, Erica Sayers (Barbara Hershey), que instiga seu aperfeiçoamento técnico e sua bondade de espírito, portanto seu cisne branco, e Thomas Leroy, o diretor do balé, que tenta levá-la a desenvolver sua sensualidade e liberdade expressiva - seu cisne negro. Este embate de forças é um dos fatores que acaba levando à ruptura definitiva na personalidade de Nina, aliado à tremenda tensão envolta no trabalho e sua própria predisposição a este rompimento. Podemos dizer que são mãos que puxam-na em direções extremas da perfeição.
A genialidade do filme parte deste tema, mas depende fundamentalmente do estilo do diretor e de sua capacidade de fazer-nos imergir nesta luta intensa em busca da perfeição: ao ver o filme, tornamo-nos parte dele, ansiamos pela perfeição, pelo sentimento mais puro e vívido e, então, com um traço da genialidade de Tchaikovsky, chegamos a este nível máximo e ao êxtase sublime e pleno que invade a mente como uma descarga elétrica que repentinamente alivia e satisfaz. Claro que não cabe a mim entregar como chegamos nesta perfeição, nem o que é esta perfeição (sempre lembrando que estou falando do conceito de perfeito segundo o filme). Com certeza é um filme indispensável, que entrou para o rol de grandes sucessos turbilhonantes de Aronofsky.

Título: Cisne Negro (Black Swan)
Diretor: Darren Aronofsky
Roteirista: Andres Heinz
Elenco principal:
Natalie Portman
Vincent Cassel
Mila Kunis
Barbara Hershey
Duração: 108min
Lançamento: 01/09/2010
Distribuidora: Fox Searchlight Pictures

Avaliação: Ótimo

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Les sirènes

Convido-te a esta noite,
Esta noviça escarlate
De olhos redondos,
Esguios, certeiros
Cheirando a perfume
E lança-perfume
Nas bodas de prata
Do bacanal.
Vem!
Nesta terra púrpura
Neste céu preto
De relances esbranquiçados
Empoeirando a mesa
Como a vida empoeira nos passos
De dança e frenesi,
Como a vida dança
Na sujeira da música
E suor do escuro.
Mas não adianta,
Nunca terás nossa coragem.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Raising Sand

Voltar às raízes talvez seja uma das mais reconhecidas formas de expressão musical. No Brasil, por exemplo, o movimento da bossa-nova veio com este intento: resgatar (ou criar) uma noção de música genuinamente nacional através da busca pela sonoridade dos antepassados. Nos Estados Unidos aquilo que chega mais perto de poder definir-se como "raíz" talvez seja o country. Neste sentido, em 2007, Robert Plant (ex-vocalista do Led Zeppelin) e Alison Krauss lançaram um álbum colaborativo entitulado Raising Sand. Aclamado pela crítica, o projeto acabou por levar o prêmio Grammy de melhor álbum de 2009.
O disco é permeado por uma profunda suavidade de espírito e calmaria inebriante, que contagiam até o mais enérgico coração metropolitano. Claro que também faz jus à tradição mais animada do country, a potência do blues de Krauss e até o histórico no rock de Plant. A sensação de elevação espiritual, contudo, é permanente; muito provavelmente em função dos vocais maravilhosos dos artistas envolvidos: uma combinação perfeita de doçura e confiança desenrola-se no encontro de duas vozes provenientes de esferas musicais totalmente diferentes. Esta química é especialmente visível em Rich woman, Killing the blues e Gone gone gone (Done moved on). A parceria funciona tão bem que mesmo as músicas cantadas apenas por um dos integrantes do álbum parecem mergulhadas na sincronia da dupla. Exemplo disso são Sister Rosetta goes before us, de Krauss, e Fortune teller, de Plant.
Escolher uma música que se destaca é, para mim, uma tarefa sempre muito complicada, mas vamos lá. Sister Rosetta goes before us, um lindíssimo monólogo de uma mulher com coração partido que ouve do céu o canto de Sister Rosetta (figura emblemática da música gospel nos anos 1930), é provavelmente a mais bela faixa do álbum. Esta faixa incorpora com plenitude a espiritualidade do disco, e por isso é extremamente marcante. Please read the letter extrai beleza e maturidade de um fim de relacionamento, envolvendo-se, mais uma vez, na profundidade de espírito do trabalho. O lirismo de Killing the blues também é contagiante, assim como o lindo conto de Fortune teller.
De forma geral, o álbum é composto por uma energia quase mitológica: suas letras poéticas narram contos distantes sem uma moral da história. Isso torna as músicas extremamente leves, volatilizando os pensamentos mais densos sobre a vida. E essa composição de resgate das origens, mitologia urbana e espiritualidade torna o álbum tão único no universo das músicas seculares (em contraponto às músicas religiosas, que normalmente encarregam-se desta sensação de profundidade). Ouça, e permita-se viajar por sua profunda suavidade!

Título: Raising Sand
Artistas: Robert Plant e Alison Krauss
Lançamento: 23/10/2007
Gravadora: Rounder
Produtor: T-Bone Burnett
Gênero: Country, folk
Faixas - duração:
1. Rich woman - 4:04
2. Killing the blues - 4:16
3. Sister Rosetta goes before us - 3:26
4. Polly come home - 5:36
5. Gone gone gone (Done moved on) - 3:33
6. Through the morning, through the night - 4:01
7. Please read the letter - 5:53
8. Trampled rose - 5:34
9. Fortune teller - 4:30
10. Stick with me baby - 2:50
11. Nothin' - 5:33
12. Let your loss be your lesson - 4:02
13. Your long journey - 3:55

Avaliação: Ótimo

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Truly born this way

Fazer música não é difícil neste século - difícil mesmo é fazer música de qualidade. Aliás, este é um mal do qual a indústria da música cada vez mais sofre, ao menos aos olhos dos especialistas, que refutam cada novo "artista" com uma inspiração que beira o plágio. Muito tem se falado sobre Lady Gaga e as óbvias semelhanças entre seu novo single, Born this way, com o clássico de Madonna, Express yourself, e realmente há momentos da música em que é quase possível ouvir a rainha do pop cantando ao som de sua própria produção. Mas creio que o problema da nova música de Gaga vai além da mera similaridade.
Quando explodiu como fenômeno pop, Gaga dava as caras como uma artista versátil e inventiva, disposta a quebrar barreiras com sua aparência esdrúxula e figurinos politicamente incorretos. Pintou-se camaleônica com a drástica mudança estética entre seu álbum de estreia The Fame e sua sequência The Fame Monster e chegou a convencer alguns de que era a nova Madonna (por mais dolorosa que seja a ideia de que o mundo musical de hoje tenha a mesma estrutura que aquela dos anos 1980, capaz de produzir grandes estrelas como Madonna, Michael Jackson e Prince, entre outros), até demais com o lançamento do videoclipe de Alejandro.
Porém, seu mais recente lançamento traz luz a uma nova possibilidade: a de que, na verdade, Gaga talvez não seja tão inventiva assim. Verdade seja dita, não há absolutamente nenhuma novidade em Born this way. Aliás, se a música tivesse sido lançada no álbum The Fame Monster eu sempre ficaria em dúvida se estava ouvindo tal faixa ou Dance in the dark, ou mesmo Monster. Na minha opinião, aí mora o maior dos problemas para Lady Gaga: musicalmente, ela parece estagnada. Uma realidade completamente diferente daquilo que seu produtor Akon¹ havia dito começa a pairar sobre a áurea de seu grande sucesso: Born this way é a mesma coisa de sempre.
Aliás, nem em seu ímpeto de apelar para aqueles que sofrem com preconceito ela foi lá muito criativa: sua fórmula já foi usada por Madonna (obviamente), Chrisina Aguilera e até Katy Perry! Inclusive, deixe-me aproveitar para dizer que em termos de músicas que visam resgatar a autoestima, Christina Aguilera fez um trabalho muito melhor que Lady Gaga, com músicas como Beautiful e Can't hold us down.
Resumo da ópera: é bom que Gaga comece a superar seus "monstrinhos", como ela própria diz, ou ao menos dirigir-se a eles de forma diferente. O problema é que a reinvenção musical na indústria fonográfica dos nossos tempos se faz mais como estratégia de marketing do que abordagem artística, tal qual Madonna fazia (notem que não estou ignorando sua capacidade marketeira, apenas ressaltando que sua música sempre tinha relação com sua vida pessoal e parcerias artísticas). Neste ponto, sim, gostaria que Lady Gaga plagiasse a rainha do pop, mas ao que parece ela tem grande potencial para se mostrar só mais uma princesa pop em meio à multidão. Sem ofensas! Eu também me entretenho com seu dance.


¹Akon comentou numa entrevista em 2010 que com seu novo álbum Lady Gaga estava "levando a música para um próximo nível".

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Da queda de Mubarak

Caiu hoje o ditador egípcio Hosni Mubarak. Já não era tempo, diga-se de passagem: depois de dezoito dias de protestos intensos em inúmeras cidades do país e uma negativa à renúncia no dia anterior, Mubarak mudou de opinião. Honestamente, fiquei surpreso - é um tanto inusitado que um homem que governou um país por trinta anos saia no dia seguinte a um pronunciamento em que declarou permanecer no poder até Setembro próximo, quando ocorrem eleições.
Pode até ser um pouco conspiratório, mas não me convenci de que os protestos da população tenham por si só derrubado o autointitulado presidente. O exército já se mostrava insatisfeito com os rumos que a nação vinha tomando: o alto comando afastara-se da repressão, declarando legítimos os anseios da população; depois, o general Hassan Al Roueini disse, na tarde de ontem, que Mubarak atenderia às exigências dos manifestantes ainda naquele dia (fato que só aconteceu hoje). Por outro lado, o Exército também deu sinais de estar insatisfeito com o prolongamento do movimento popular: oficiais chegaram a pedir que as pessoas voltassem para casa; o Chanceler, ademais, advertiu para a possibilidade das Forças Armadas intervirem no processo.
Hoje, afinal, Mubarak caiu. E quem assume o poder? O Exército, claro. O que para nós, Ocidentais, sempre gera algum receio (mas também, o que no Oriente Médio não gera receio no Ocidente?). Especialmente na América Latina, onde tivemos experiências um tanto quanto desagradáveis quando as Forças Armadas resolviam intervir na política, e no caso egípcio me parece nítida a intervenção.
Mas isso não significa que o processo será igual no Egito, talvez muito pelo contrário; a política no mundo funciona numa relativa confluência, e fatos históricos são muito bem lembrados não só por aqueles que os vivenciaram. O Exército egípcio tem uma grande oportunidade de demonstrar uma dignidade e fidelidade, arrisco dizer, sem precedentes no mundo Ocidental, e pelo que tudo indica é exatamente essa sua pretensão: o Conselho Supremo das Forças Armadas declarou que vai fazer um governo de transição até as próximas eleições, nada mais.
Não sei o que vai acontecer no Egito, mas uma coisa é certa: foi uma das mais belas expressões de poder popular e desejo democrático da história recente, com o Exército correspondendo aos anseios do povo com proporcionalidade e moderação.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Sangue carmim

Eu cá, leão,
Faço meu leito em murmúrios e roncos
Roço a entrada do mundo
E forço-lhe em destroços.
Eu cá lhe rujo em dragões
E lhe rosno em fênix;
Eu quero a sabedoria renascente.
Eu cá faço-me em pedras e pérolas
E rolo os barrancos rumando ao rio,
O grande rio negro
Que rasga do ventre à juba carmina.
Deita-te, grande leão,
Deita-te neste leito letrado,
Mergulha em sua negridão
E conta se algum leão dele surgiu.

Âmago

Tomara que os ramos de flores
Que brotam na cerejeira
Continuem na penumbra
De uma árvore nascida
Entre muros de terra
Na escuridão.
Tomara que caiam perdidos
Na cega lama
Para brotarem
Qual noviços brotos escuros.
Tomara que a mais linda cerejeira
Continue sendo esta escondida,
Que de flores brancas
No lamaçal marrom
Só sabe ser perdida
Num escuso breu de segredo
E deliciosa solidão.