sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Painel

(Suffering - The War on Drugs)

Está tudo quieto.
Há muita paz.
O mofo sumiu
E aparece a tintura esfoliada no mural.

Mas é inquietante...

Não há rasuras entre os desenhos;
Não há vida subindo verde-rompante
Nas linhas brancas que o tempo esculpiu na mandala.
Não há raios eletrizantes corroendo o afresco.
Há somente labirintos cravejados de brancura
Sobre a face de um deus
Construído de enfados.
Há somente ausência de caos -
Ausência do medo de perder todo o enredo.
Mas a vida não foi feita só para contemplação.
A vida deveria ser o inquieto contemplo,
O distúrbio da pacificação -
Não apenas seus extremos.

Autorreprodução

Eu não sinto falta do amor.
Não sinto falta de sexo
Nem de conexão.
Convulsão pra quê?
Prefiro olhar no espelho
E ali mergulhar numa paixão
Muito mais verdadeira;
Decretar o tesão como um momento de epifania interna,
Uma dança no escuro
De olhos bem abertos sobre o Universo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Passos no mar

Içar velas!
Navegaremos ao encontro da borda do mundo
Com a caravela de ré.
Invertam-nas já!
É chegada a hora de desnavegar a embarcação.
O mar já foi explorado,
Vamos às montanhas
Onde a água petrificada esconde torrentes de lava
E os ventos nunca cessam seu soprar.
Lá viajaremos até derreterem os cascos
E os corpos fundirem na rocha fervente
Voltando a ser minério latente.
Levantem os olhos!
Vejam as ondas gigantes de pedra e neve!
Vejam o seu lento quebrar nas forças do tempo!
Vejam os monstros que habitam seu coração!
Vejam o desgovernado mar de terra
Ruindo em tempestades assombrosas sobre si!
É tempo de desacelerar o tempo
E fitar silenciosamente seu ruidoso passo;
É tempo de passar.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Desnódado

São um mistério, eu te digo
Afrontosamente,
Algumas alegrias.
Algumas delas são vingativas
E no entanto próprias.
São externas e internas.
Confundem-se no desnó de um novo embaraço.
Completam-se na incompletude,
Que no incompleto do si
Já estava suficientemente embaralhada.

Algumas alegrias não são completamente alegres,
Mas vêm para reviver um espírito
Cheio de ateísmo.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Não é estranho?

Não é estranho saber
Que o amor pode ser desacoplado?
Mais do que desjunto e individual -
Solitário.
Não é estranho
Que uns bichos dentre nós
Sejam mais bichados
E a carência de amor multiplicada
Soe como amor multiplicado?
Soa-me muito estranho
Que amar e querer amor
Possa ser uma equação tão desequilibrada
Como se a feiticeira da psiquê
Tivesse nos entornado uma poção
De malogrado
Só pelo prazer de ver
O humano despedaçado.
É muito estranho perceber que isso -
          Assim como qualquer reação de vida
                    (Ou melhor, mente social),
          Escolhida ou embutida
                    (Se é que há aí grande diferença) -
Seja tão naturalizado.

Abraço

Começo a me sentir mais em casa no mundo.
A crise de todos enfim deu as caras
E cá estamos, todos fodidos
Numa geração que enfim
Abraçou sua queda.

sábado, 10 de setembro de 2016

A Ordem das Coisas

(Like Someone In Love - Ella Fitzgerald)

Os anos passam e as coisas suavizam -
Esse é o processo natural delas:
Que se conformem na vida
Aceitando o tempo,
Perdendo a força, com um rompante ou outro
Ilhado na crescente calmaria.
As coisas são decrescentes,
Minguantes
Atenuando no cotidiano
Muitas vezes sem nunca morrer -
Só estar ali para serem vez ou outra reanimadas
Como um suspiro mais fundo no constante respirar.
Mas há doenças que nos acometem do avesso
E acontecem para nunca mais voltar
Ao ar mais ou menos que normalmente estufa o peito.
A maioria delas é terrível e só traz sofrimento,
Mas há uma que mesmo doendo é puro prazer.
Há uma que subverte a ordem das coisas,
Que parece explodir a todo momento,
Que engole os pulmões do avesso
E vive um cotidiano de intensos.
Há uma que não cabe a todos os poetas,
Nem mesmo a todos nós,
Que de tão contrária a tudo
É muitas vezes angariada no rol dos mitos,
É ignorada e confundida,
É atacada e pode até sair contundida -
Uma doença que pode ser machucada.
Mas, façam o que fizerem,
Digam o que disserem,
Essa não morre
E muito melhor viveram os que dela padecem.

Bipartido

(Various Storms & Saints - Florence + The Machine)

Eu te desejo
Em repulsa.
As minhas energias estão em caos:
Quero-te perto de mim,
Tornar-te apenas meu,
Para poder tripudiar o lado obscuro do amor
Com a luz do ódio
E te consolar.
Eu quero um poder que nunca tive
E que tens sobre mim.
Talvez, afinal, seja tudo questão de vingança
Ou o extravaso da impotência de uma criatura miúda
Num mundo girando no caos;
Talvez seja amor ainda -
Ainda que consumido por dentro de horror, ainda -
E o que então fazer com essa pequena labareda
Piscando na escuridão?

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Anjinho

(I Love You, Honeybear - Father John Misty)

O triste disso tudo, amorzinho,
É só a minha solidão.
De resto é tudo muito bonito e feliz.
De resto você está bem
E o meu amor é sempre firme e forte.
De resto eu nunca restei
Num descanso gostoso de amor.
De resto, amor,
A vida pode ter sido justa ou injusta
Não importa
Eu só sei que ela não andou na direção que eu queria -
Ela só desandou num caminho
Em que eu não posso te chamar de anjinho.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Grito de Socorro

Para-me, por favor!
Salva-me!
A vida está prestes a virar de ponta-cabeça!
A vida está a ponto de autodestruição!
A vida chegou ao ponto de implosão instantânea!
O horror beirou a maravilha
E eu estou morto!
Eu estou morto!
Eu estou morto de tanta vida,
Socorro!
Ele não sabe!
Ele não sabe o quanto
Ele não sabe o quanto estou morto por dentro!
Ele não sabe o quanto ele é a encarnação da morte!

sábado, 3 de setembro de 2016

Velho Chico [2]

Eu e o Chico estamos casados
Em casa
E na rua
Imprensionados enquanto o Vice versa
O vice-versa
Da rua
Da casa
Virando ali à direita
Um pouco mais atrás
Depois do batalhão.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Fox Fade

O fado da raposa
É o fardo da rapsódia:
Uma história cheia de sagacidade,
Sapiência e impaciência.
O enfado da raposa
É a inteligência fardada de corpo pequeno;
Corpo vermelho-fogo;
Fogo verdadeiro-afôgo.
Sobe a cauda, pira em chamas;
Pira o chamado anti-humano
Chamuscapirado.
A sina da raposa
É vibrar o sino na garganta
Sem ter grunhido um músculo sequer;
É se querer
É sequelar
É se quedar.
O mundo lhe é às vezes galinheiro
E noutras milharal.