quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Desguardado

(Like a Prayer - Madonna)

Guarda tua persona,
Poeta,
Que ela está passada.
Vigiai!
É chegada a hora
De manter acesa a chama:
Leva contigo o óleo sagrado da poesia -
O noivo está vindo!
Queima na lâmpada o passado -
Ele vai passar!
Queima na cruz o ar que há tragado;
Trema à luz dos fonemas velhos
A glória dos fados,
Dos arrebatados
E das dores dos achincalhados -
É hora da nova glória!
É hora dos grados
Novilogrados!
Guarda a persona, poeta!
Os poemas descansam na paz eterna
De um religioso estado.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O que está cindido

Aconteceu ontem um homicídio no meu bairro.
A polícia veio à minha porta e perguntou
Se tinha visto a filha da vizinha da frente.
Ela tinha a minha idade, uns quinze anos,
E tinha sido vista pela última vez andando de bicicleta
No final da rua, perto do bosque.
Ela tinha realmente passado aqui pedindo uma xícara de açúcar,
Mas a verdade é que estávamos naquela casa só de passagem,
Alugamo-na para a temporada
E dali a alguns dias voltaríamos de onde viemos.
Foi então que reparei entre as sirenes piscando no jardim do outro lado da rua
Uns cães farejadores
E achei melhor acordar antes que chegassem no meu quintal
E deixar tudo bem enterrado no subconsciente.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Filho da Terra

Nasce de luz, trevas e éter
Uma aceleração de trava
O assexual ninfomaníaco
E o mico
Com pelo de eletropositividade;
Nasce o rico desendinheirado
Morre o fico
E fica o imperador:
A vida, então, nada mais é
Que um império abandonado.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Quatro Motes em Crescente Até Poemar

(Kyrie Eleison I da Missa em Si Menor - Johann Sebastian Bach)

Variações sobre a mente excessivamente gasta para focar na técnica

Uma técnica já deveras debilitada pela falta de experiência ou prática

A experiência que, na prática, por si só basta para trazer o corpo a um cataclisma retumbante

Variações para evitar o foco excessivo no olho da gruta

A caverna tem um olho sem olhar
Ela não cabe
                                        Não cabe
No seu próprio sopro sussurrado
Nem na lua nova no seu mar refletida;
Ela emite o canto das ondas de sua garganta
Expelidas contra o vácuo
Que o vento puxa em sua passagem -
O canto agudo de uma flauta de bambu
Na noite silenciosa;
Ela mexe na liquidez viscosa
Das águas que arrancam terra das paredes
Alargando o espaço e afinando a rocha
Até restar só boca no luar obscuro
E, por fim, um litoral obtuso
Donde canto não se pode dragar.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Poema Dos Desejos Latentes Silenciados

(Black Swan - Nelina Trubach-Moshnikova)

Se você pergunta
Pelas minhas credenciais,
Digo que hoje elas são mais ricas
Porém estranhas.
Não se me permitem
As façanhas do grandioso arcaico
Apesar do estrago que faz
A grandiosidade moderna.
Assimilo os defeitos como intrínsecos,
Jamais como pontualidades
A corrigir -
A verdade é que os fios emaranhados
De uma bomba-relógio
São mais honestos
Que uma simetria enclausurada no papel.
Conto, enfim, que minha maior façanha
É o desejo sem ter desejado,
O infinito microcomputado -
É, para pô-lo de forma simples,
A eterna vivência latente
Que parece nunca ter sido vivenciada.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Sete Rimas em Confusão

Quando a gente é jovenzinho demais
Escuta um samba e só vê alegria
Achando que a alegoria mente bruta
Se se faz doendinho e bamba
Mas, mais e mais,
A labuta, a fruta,
A lamba da gamba
E um bando de gente fria passando
Arrepia al dente a melancolia,
O benzinho se astuta
E a mente descamba diferente
Nos anais do samba.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Corrido

(Hanayagi - Ensemble Nipponia)

Eu queria ter corrido
Mas a chuva não quis passar.
Queria ter corrido até passar;
Queria ter passado escorrido;
Queria despassado ter corrido;
Queria ter morrido;
Queria ter o morro transcorrido
E, trespassado, também a chuva passar;
Quisera o passado ter chovido
E, apagado no verde do morro ido,
Se enquadrado no meu passo
E ao pé do ouvido tocaria
Só o chuvisco emitido contra a rua
E o pé na curva a tocar.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Elas

(Mulher do Fim do Mundo - Elza Soares)

Agora é que são as medusas
Cheias de "me usa" elas me gritam por dentro
Até a emoção petrificar
E eu não me comover -
Locomover as pernas até o desuso
E cobrar do mundo só o pó
Pra levantar no sambódromo um ar de feiticeira
Ceiar com outros monstros
Meu estado natural
Descamado da pele humana
Ainda desacostumada de ser desfigurada pela sorte
De em excessivas sortes ser azar.

Agora é que são as sereias
E as presas gradeadas no sorriso
E a ruindade naufragada no meu mar.

Agora é que são as fúrias
Nas íris pretas de pupila
Numa ode a nada que é belo -
A poesia também canta doentio
Quando a beleza arrega o canto
E a sobrevida pede passagem pra dançar.

Agora é que são
Quando não.

Elos

(We Don't Eat - James Vincent McMorrow)

Ela se vigia
E nega que haja vida
Além das vigas em que teia
Os pensamentos para si
E ela se enrija
Rigor mortis viva
Meio de muito pensar
Meio de pouco demais
Emaranhada nos próprios fios
E nos que escorrem da chuva
Melecando a seda em bolo
Embolando os pés e mãos
Numa vigília enfurnada
Na própria visão
Periférica e distante
E não importa quantos olhos tenha
Quantas letras teça
Ela e sua liberdade
São sua própria prisão.

Limbo

Estou cansado demais pra fantasiar...
Desgastado demais pra viajar.
Exausto da vida, exausto.
As relações são só o recheio sem gosto
Entre as pontas do tendão;
A única pessoa que realmente valia
Me traiu
E abandonou com o coração despedaçado.
Eu não acredito mais nas pessoas...
Não acredito mais em mim.
Eu não acredito em mais nada.
Eu não vivo por mais que o suspiro
Que me leve à próxima tragada.
A morte está perto, tão perto,
E ainda assim não me toca.
O que ela espera? O que mais ela espera a vida tirar?
Falta ainda a melancolia...
Talvez quando ela perdida
Enfim eu descanse.
Eu quero estar em transe
Ou que isso tudo desmanche de vez,
Mas tudo que sou é dopado de tempo
Vivendo de limbo
No limbo
Limbo...

Efígie

(Romanticide - Nightwish)

Basta!
Já empobreci o suficiente
Todas as rimas e ritmos
Por um verso de amor.
Rasga de mim teus olhos nojentos
E apaga tuas palavras torpes,
Sacrilégio de ser!
Teu abismo de profanidade,
Tua falsidade e manipulação
Não mais me remoerão!
Eu sou a cidade,
Tu, só neblina
E eu num sopro te varrerei
Dissipado em sangue evaporado
Para as catacumbas das montanhas,
Onde o velho e pútrido voltará ao pó
E os teus encantos serão sepultados
Sob a efígie da magia velha
Que não me marca mais.
Eu te declaro morto.