domingo, 23 de abril de 2017

O Nicho das Palavras

Meus versos cabem no mundo que lhes cabe.
Às vezes o mundo sou eu,
Noutras, meu mundo
E noutras ainda o próprio mundo -
Mas mudo não me caio.
Decaio no mundo como água:
Às vezes orvalho,
Às vezes inundo
E vez ou outra me confundo com a própria terra
E adubo.

sábado, 22 de abril de 2017

Veterano

Eu prometo que vivo
Olhando em frente
Portando armadura leve
A cavalgar
Trotando militaresco rumo ao infinito -
Eu prometo.
Só não me peça
Na promessa um adendo
Dizendo que não levarei
Tatuada no peito
A tristeza da dor dos perdidos,
De quem perdeu no caminho
Batalhas de amor,
De quem veteranou
E viu cair do cavalo a esperança
No campo espinhoso da vida
E desesperançado marchou.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Terra Rossa

Encontrei, certa vez,
Quando fui novamente criança
Uma bola maciça de chocolate
Jogada na terra
Envolta num papel brilhante.
Agachei junto ao chão
E fiquei ali por um longo instante
A comer o doce como quem come caqui,
Roendo em volta a carne do osso
Temendo que houvesse no meio
Um espinhento caroço.
Assim, talvez, prolonguei a infância
Ao transformar o prazer num frutoso manjar,
Ou apenas roí a lembrança
De na vida adulta temer que a doçura
Esconda em seu cerne a dor.

domingo, 9 de abril de 2017

Vadia

Várias vezes princesa
Eu renovo a vida
A existência
A cada manhã
Várias vezes cansada
Eu eximo a vida
Pra existir falseada
Como se alcoolizada
Eu estivesse viva
O suficiente
Pra feder exímia
O cheiro da superação.

sábado, 8 de abril de 2017

Reflexão (ou "Fachadas espelhadas criam paisagens ilusórias")


Quanto reflexo, eu reflito, de escuridão. Rachando sob o sol, a extensão da terra se refaz - é tudo tão perto e tão longe, como se fosse ontem mas amanhã acorrentado na simetria ancestral futurística vã. Eu reflito anã a claridão do vão que faz as vidas como se o destino errado fosse humano e não houvesse uma mão guiando fria a construção; como se não fosse humano, e perplexo olhasse os deuses e agradecesse por somente existir; como se a miséria e a riqueza não fossem atreladas num espelho caolho que arregala num canto pra trancar no outro; como se o breu não tivesse vindo de navio negreiro pra pousar inferno nessa terra reduzida a guerra - guerra não dita que descasca na pele aflita de quem deu a carne pra ver engolido o coração policiado no morro.
Quanto reflexo, eu reflito, do espúrio nós somos? Quanto espelho humano ignoramos em nome da autopreservação? O refletido teme sua própria exatidão, como se houvesse entre os cantos do mundo uma infinitude - como se não fosse parte da multidão. O dinheiro maltrata a relação humana e faz dela uma ligação de sangue, tornando-a um mangue que se enxerga apenas pelos galhos retorcidos mergulhados na lama espessa de um comando vindo narcísico do reflexo cego. Nós somos cegos mirando o espelho.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Chuviscado

Meu cubículo é de asas
E se esconde lá no alto
Enterrado numa nuvem carregada
Que chuvisca delicada no batente
Do meu mundo resguardado,
Da minha torre
Com sua vista embaçada;
E eu vejo como um deus de conto infantil
As varandas estendidas no breu do céu
Flutuando para fora das casas escondidas
Onde os deuses não enxergam -
A não ser que a janela esteja aberta,
E então eu tenho um breve relance de humanidade.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Fundamento

Eu já tive muitos amores românticos
Ou romantizados.
Bom, não muitos -
Mas o suficiente para entender
Que meus amores verdadeiros
Estão e sempre estiveram depositados
Nas amizades sinceras
Onde os sofrimentos profundos
E as puras alegrias
Não mais do que sua própria verdade
Se intensificaram.
O romance e seus enfados me cativam,
Mas na forma de um vício exagerado
Que me extrema mal-diagnosticado
Gerando letras de prazer e dor
Mais-que-humanas.
Não que não queira mais-que-humanidade,
Mas meu fundamento,
A base de minh'alma em sua forma terrena,
A estrutura verdadeira e humana da qual se me permite buscar algo além,
É a amizade.
A prevenção da morte
E o apego à minha própria face
Estão nos amores serenos
Onde no dia a dia em sua imensidão
Escondido do exagero poético
Eu descanso.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Póstulo

Eu postulado
De punhal avesso
Nascido espinho dentro da carne
Atravessando eterno exteriorante
Tornando-me constante resultado
Da equação da vida.