terça-feira, 16 de julho de 2024

Turvez da Mente

De onde olho o mundo,
Tudo às vezes parece turvo.
Esqueço quem sou - quem é a minha versão
Pujante e itinerante -
E fico na perdição de um outro Eu
Mais errante,
Menos enfático,
Mais estático e fatídico,
Um Eu quase mitológico
Que se sente fadado por feitiços antigos
Falados por deuses invisíveis,
Esquecido daquelas coisas mais humanas,
Da liberdade, da dignidade e da capacidade.

De repente sou só vícios,
Sou os resquícios do que sou,
Sou o que não sou -
O que deixei de ser quando me desencontrei
E no desencontro me recriei
Numa versão espelhada,
Disforme e contorcida;
Uma versão que não se recorda da sua vida,
Que se esquece da poesia
E mergulha em letras cansadas,
Num falar pela fala
Que jaz mecânica contra os lábios
E escapa num quase último suspiro.

Quero perguntar-me quem sou,
Sinto que devo questionar-me de novo -
Mas não porque agora me perdi,
E sim porque me roubaram.
Parece que o mundo me arrancou algo de coração,
Que me desejou caído na contramão,
Que me desdesejou
Até eu cair em degredo
Sem vontade nem potência.
Parece que meu livre pensar foi envolto
Pelas trevas de turvações alheias -
Parece que como abelhas eles me enxamam,
Me enchem de óleo e inflamam,
Para não restar no meu peito força para falar.
Uns me roubam as ganas por cima,
Outros me passam a rasteira
E alguns ainda se infiltram por dentro
E tentam de lá me carcomer vivo,
Feito parasitas que se declararam cheios de amor.

Meu corpo se inflama da peste obscura da desconvicção,
Carregada das várias fissuras
Que atentam contra a minha razão.

Quero crer haver saída,
Quero pensar no caminho que me livre,
Mas ele ainda está encoberto.
Por hora, resta-me o amortecimento
E a esperança de um amanhã incerto.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Desencanto

O espirito da minha sombra se enche e se espaça na noite deserta do meu esquecimento.
A luz da candeia se incendeia tão pouco -
É quase nada envolta na grossa penumbra
Da fuligem que ela mesma exalou.
E eu não entendo...
Não entendo como retorno
A esse desencontro
Que me é tão encontrado.
Eu não me entendo...
Eu sou todo um universo de gavetas
Guardadas no guarda-roupa do espaço
Desarrumado em caos desachado.
Eu sou alguma coisa que o cadafalso ainda não revelou.
E nessas horas em que me deparo
Despido perante a lua,
Descoberto de mim,
Revelado, enfim...
Nessas horas me sinto tão Eu
Que quase queria não ser.
Queria outras coisas mais,
Mas meu antigo descompasso ainda me atina,
Ainda afina nas minhas palavras o descontínuo diverso de mim.
E eu, endividado de vida,
Me perco retornado
De uma perdição sem caminho,
Rodando em falso
Feito um redemoinho.
Mas algo no meu giro se-me remove...
Algo se locomove
E comove uma nota em declive.
Ouve, melancolia velha,
O canto que te canto
Com essa voz;
Essa voz que é minha
Ainda que nascida da tua -
Mas que da tua raíz suspendo e elevo.
Ouve que com essa voz manifesto
Um som que vaza do meu profundo
Dizendo do alento -
Dizendo que o sono não é mais que um pensar desatento,
Uma hipnose obscura que se-me enfeitiça quando se ancora no meu pensamento.
Contra tua fúria eu sou pensares distintos -
Eu sou dos fluxos contrários
Pupilo e rebento.
E de tanto ouvir teu sussurro
Cantado no escuro do apartamento
Eu já te aprendi as passagens
E despertei do teu encantamento.

domingo, 17 de setembro de 2023

Cata-vento

 Onde você está, meu amor? Procurei você debaixo do lençol, debaixo do meu nariz, dentro do chafariz dançando com as águas; procurei o teu sinal brilhando no céu feito chamariz, rivalizando com as estrelas, querendo irromper pela minha porta e iluminar meu coração… Mas acho que foi tudo uma ilusão – ou não. Foi tudo cor e pensamento, foi magia e foi contento, foi o meu entranhado estranhamento estabanando ao léu no vento e encontrando no relento o teu ligamento – a calefação do teu olhar desencontrado que cruzou meus olhos pardos e caiu feito escarcéu no carrossel do meu lamento.
        Ouvi a voz da tua mente ecoando por aí – eu a escutei andando a esmo, procurando a minha alma esvoaçada, esticada pelo espaço, desejando o meu sustento – e nesse instante eu fui teu cata-vento, te fisguei numa tarde ensolarada e capturei teu movimento; e você passou por mim como um pulso, um alimento, como um arrebatamento, como a fina poesia que escorregou por um momento entre meus dedos e jorrou desajuizada por entre o filamento das fissuras avassaladas da minha vida, que já se fazia escancarada pro teu bote enfurecido de paixão e esquecimento.
        Eu sou desses que se entrega pelos olhos – que devora a tua boca com a mente enquanto mira alegremente as cores vivas dos teus lábios. Mas tu me és Medusa, um fito teu e eu me enclausuro petrificado na lonjura de um temor de te amar. A paixão é, para mim, assim: uma queimação corroendo o coração, uma labareda a fazer das minhas entranhas uma fornalha que esfumaça silenciosa como uma dúvida a fervilhar no calor da minha memória – serei eu um seu amor ou só vapor no seu olhar?
        Eu me perco em ti – e que deliciosa perdição. A sombra da explosão de mim se-me engrandece; aqui nessa emoção eu me ressignifico, eu perco quem sou para me recriar de novo à imagem de um sol que jorra da minha pele como ouro em ebulição. Não sei teu nome, não sei se te verei outra vez, quem sabe se sequer saciarei tua fome, mas a minha insensatez me basta – basta-me o vislumbre da tua doce tez para a minha estupidez fazer-se alada, embriagada, e eu querer-te novamente, como não tive nenhuma vez.
        Ouve, então, daí o meu feitiço – o meu encanto lançado à terra como incenso e farol te procurando pelo cheiro e pela cor a cada esquina: sê para mim uma fervilha, um caldo grosso que reaviva; vem curtir no meu cangote o lote dessa nossa sorte – vem comigo ser Dom Quixote e caçar moinhos, arrancar espinhos, dançar um xote, formar quadrilha e meter no malote os descaminhos que roubarmos da vida enquanto houver vontade, poesia e encanto nas nossas horas, tão poucas e vadias.

domingo, 27 de agosto de 2023

A Era do Vento

 Quem sou eu? – eu me pergunto outra vez. Novamente me acho numa daquelas encruzilhadas – igual a tantas que outrora encontrei – nas quais reencontro uma verdade que me contara a meu respeito em vidas passadas – uma verdade que já não reconheço como verdadeira. Pouso meu olhar sobre o poço profundo que lateja no meu escuro e lanço sobre ele a minha declamação de mim, mas percebo que ele ecoa um som que me retorna num tom diferente – a mensagem que se desenha nas suas entrelinhas se encontra metamorfoseada, não correspondendo com exatidão às palavras que pronunciei. O poço me desengana – ele me confronta com o que digo ser a minha vontade, respondendo que “não: eis aqui a distorção escondida no canto que cantas, eis o que se oculta de ti na sala de espelhos que te construíste para preservar tua pretensa integridade – eis o que a água dos teus abismos, dos lençóis freáticos de ti, te retorna em ondas difusas, inexatas, incontidas. Tu já não és quem pensavas ser; tu quase nem és, ficção das ficções que é esse Eu com quem te contornas”.
        Onde estou? – me pergunto desconhecido. Parece que sou outra vez recém-nascido; que me encontro perdido num mar de possibilidades, numa alcova de personagens disponíveis com suas vontades, crenças e manias que posso assumir à vontade, conforme a fase da lua que me embate e arrasta o meu véu de identidade pra lá e pra cá nas marés da verdade. É um desencontro que me fascina, me assusta e me excita. Parece que me libertei de quem acreditava ser e agora quero descobrir-me uma nova casca, uma nova camada de incompletude com que me direi ser Eu por um tempo, até que o próprio tempo outra vez me desnude e refaça. Mas quem é este que desejo ser agora? Que lugar é este que quero ocupar em mim para escorrer com as ondas que me remodelam? Que encostas são essas a que cheguei marejando, sem saber exatamente como, sob o comando desgarrado da lua cheia que me preenche com sua espessa escuridão?
        Por muito tempo me cri moldado conforme os contornos de um amor de dunas – um amor fechado no circunspecto de um outro alguém, criado à sua imagem, fazendo-lhe o universo do real até a lonjura que o sol toca. Talvez porque vivi um tal amor no passado, cri-me procurando-o uma e outra vez no labirinto do mundo, tentando me desertificar nos recantos perdidos da Terra, em espaços aos quais não pertenci por inteiro por não me saber pertencer. Agora parece que me encontro enfim entendido dessa minha busca errônea, desse cambalear falseante com que me forçava a ser o que fui, sem querer aceitar que aquele Eu já passou. Hoje entendo… Entendo meus vícios, meus descaminhos e os crimes que cometi tentando me enganar. Enxergo a trilha de corações despedaçados que deixei para trás por não saber me desvencilhar desse amor antigo que quis tantas vezes em corpos distintos ressuscitar. E assim entendo melhor o que não sou – não mais, pelo menos. Entendo o que oferto e o que busco, compreendo o que não quero e aquilo que não posso oferecer.
        E, se silencio o suficiente para interpretar o que agora ecoa no fundo de mim, descubro uma resposta que me diz: quero ser o meu desejo. O que reverbera em mim agora é o anseio de ser todo feito da matéria que compõe essa pulsão primal – essa fome que escondi de mim, esse ímpeto de vida que me neguei em nome de me controlar… De controlar o que me aterrorizava no meu desejar por sua liberdade indomável. Quero desmodelar meu amar, desfazê-lo da casca à qual o submeti acreditando fazê-lo melhor. Quero tirá-lo das dunas desérticas da ilusão prometida, do lugar de aconchego desassossegado que lhe incumbi, pensando-o como um dote a ser ofertado, colocado num coração exterior e ali derramado pelas Eras da minha fundição. Agora eu quero transfigurá-lo conforme a minha imagem, tornar as areias da sua ampulheta em ventos desgarrados; quero ser eu o seu cerne desachado, transitando nas cordas do fado que eu canto não por outro, mas pelo meu corpo de ar, pelo meu próprio sopro com que arrebento ora nos rochedos, ora na mata, ora nos oceanos e, por que não, também nos desertos. Quero soprar como tempestade e sussurro, escolhendo meu tom segundo o momento, fazendo meu canto como uma onda cuja entonação se desaloja do premeditado e subitamente reencontra sua nota num outro lugar.
       Mas as minhas prisões ainda buscam me conter. Os meus erros antigos me perseguem querendo repetir-se, como se eu me recusasse a aceitar minha própria transformação, como se me agarrasse à segurança insegura do meu desamor e quisesse permanecer no deserto por toda a minha vida; porque, afinal, ali o céu já é suficientemente estrelado – e quem precisa conhecer outras constelações? Minto e ressinto, oculto e renego, faço-me um labirinto que encobre de mim e dos outros o amor que agora se-me faz mais verdadeiro. Entrego o que penso ser entrega e o resto omito, pensando escondê-lo até mesmo de mim.
        E, no entanto, as minhas palavras lançadas ao vento já não me permitem me enganar. O meu poço reverbera, suas trevas ressoam como um canto gutural incontrolável e inconteste que brama contra as minhas mentiras a sua ressonância de nova verdade. Um novo amor clama por nascer dentro de mim; ele demanda espaço, me pede que aceite seu novo percalço, que me desenfeite dos ornamentos da minha devoção antiga e vista as roupas novas de oráculo em cujo sacerdócio ele faz oferendas que ainda me são misteriosas, suplicando bênçãos desconhecidas dos deuses em rituais secretos que, pouco a pouco, começam a se-me revelar. E eu – já bem entendido das oscilações do tempo, já reconhecido na mudança e desprendido das velhas crenças de Ser e me impor – simplesmente me rendo. Que venha a Era do vento com todos os seus erros, incertezas, descobertas e aconchegos.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Combustão

(You - Miley Cyrus)

Você me criou
Um furacão nas entranhas –
Me fez fogo e água
Girando num turbilhão.
E agora eu me acendo e apago simultâneo –
Eu me queimo e esfumaço,
Evaporo e borbulho
Numa deliciosa contradição
Que me revigora,
Me faz combustão;
Eu me acelero e me encravo
Na tua carne, nos teus olhos –
E de repente me lembro
De como morri
E de quantas vezes renasci.
Eu me lembro de tudo que fui,
Do que serei
E de tudo que me direi que não quero esquecer.
Pois eu direi que não quero perder
Esse pedaço de aço
Fincado firmemente no vazio do espaço,
Essa certeza escassa
Que encontrei na tua respiração.
E então, o que faço?
No fim, apenas me desfaço,
Pois hoje sei
Que só me resta render-me ao que sinto –
Então me entrego e sublimo
Ao teu calor,
Ao furor de ser o que for
Em você.

domingo, 4 de junho de 2023

Nova Carta a Ti

Dia desses me lembrei de quando te amava. Mas a lembrança foi estranha… Ela me veio com uma anômala ausência de sentimento – veio com um olhar distante (quase poderia chamá-lo de distanciamento), frio e analítico, daqueles olhares obtusos que lançamos no estudo superficial da História no colégio, quando desconhecemos a realidade vivenciada dos acontecimentos e lemos desinteressadamente um relato vago e questionável dos fatos. Veio, não por acaso, numa instância em que narrava os eventos de minha vida despretensiosamente a terceiros semi-interessados. Contava um causo contigo como se fosse um evento engraçado, uma mágoa passada já hoje esquecida e apagada, um resquício de uma vida que vivi há muitas eras, quando eu era um pirata, um tabelião, quem sabe uma marmota ou até mesmo um fungo agarrado a uma pedra esma na beira do mar. Senti-me por um instante como aqueles velhos marinheiros dos filmes, que narram aventuras de juventude e epopéias longínquas entre uma e outra garrafa de rum numa taverna mal iluminada com velas antigas – candeias tão velhas que completamente enrugadas de toda a cera que verteram chorosas sobre si mesmas – em meio a um cenário que se pretende enigmático e perigoso, repleto de rostos estranhos e goteiras que deixam vazar através do teto de madeira decrépito um ínfimo resquício da tempestade cujo som estremece num ribombo discreto as janelas, insinuando com gravidade o vendaval que agita o mundo lá fora.

Mas esse sentimento cinematográfico durou mesmo apenas um instante. Veio e se foi num átimo, no tempo que me levou para perceber, com a frieza distante que agora cobria o meu olhar, o tamanho do machucado que havia se escondido debaixo do meu amor por você todo esse tempo. Chocou-me a descoberta. Vi, com espanto, que não havia na história que contava despretensiosamente nada de belo, nada de gracioso. Aquelas palavras tantas vezes repetidas com ar tragicômico, de quem recorda para se apagar, de repente não tinham nenhuma lisura com que eu pudesse encobrir de mim o horror que latejava nelas. Os anos me tiraram os recantos de negação onde eu me embrenhava ardiloso para me negar em nome de te amar. Subitamente vi meu eu passado como uma pobre minhoca – uma vida anelídea cega e viscosa mergulhada nas trevas da terra, comendo merda e acreditando que ali era o seu lugar. Vi-me – pior – uma lagarta que se acreditava minhoca, sem saber como me alimentar apropriadamente ou sequer ter noção da importância de me autogerminar em casulo. Vi-me e tive vergonha. Vergonha… Mas compaixão.

Compaixão por mim, agora – excêntrica novidade. Compaixão por aquela jovem alma que acreditava no amor como fundamento e o teve arrancado sem misericórdia; pelo meu espírito traumatizado, cuja dor latejara tão fundo que já nem se parecia com dor – soava mais como um distante esquecimento de mim, uma desmemória do meu corpo que se anestesiara com nada para nada mais sentir; compaixão por aquela pequena lagarta que não imaginava que pudesse ser qualquer outra coisa que não comedora de terra.

Esse novo sentimento me calou subitamente. Aquela história, contada daquela maneira, já não era minha. Não fazia mais sentido saírem da minha boca aquelas palavras perdidas de uma identidade que jazia vertida como vinho avinagrado sobre o chão. Aquele teatro era como uma fruta podre que continuava agarrada a mim, o receptáculo de uma velha mentira que enfim estava madura o suficiente para cair. Senti então a dor pungente que não sentira por todo esse tempo, que permanecera escondida na minha enganação – a estranha dor de um caule saudável que percebe o instante em que um fruto estragado se desprende num estalo; de um galho que, num átimo, passa a balançar mais leve e respira com flexibilidade, esticando os seus ramos em direção ao sol; a dor de um broto que escuta, ainda na sua inexistência, a imensidão da existência prometida, da ardente potencialidade que se abre no novo caminho que se-lhe permite desabrochar.

Não sei por que te escrevo essas palavras. Talvez busque com elas provar para mim mesmo que tua ausência estancou em mim. Mas parece haver nessa atitude também a percepção de que, com essa estanca, também perdi toda uma alegoria de vivências possíveis que parecem ter desaparecido por completo do meu ser. O amor em mim se tornou uma coisa do passado. Sinto, sim, a possibilidade de um desabrochar que promete me encaminhar para outras realidades, mas nelas todas ainda parece correr obscuro um sangue preto – frio e viscoso num canal encravado oculto na encosta da minha jornada. Parece ainda me faltar alguma coisa que esqueci, algo que perdi com você. Ou talvez isso seja te dar poder demasiado – talvez a estanca seja muito mais antiga…

Sim! Vejo num relance de minha infância aquela corrente discreta se arrastando pegajosa por entre o verde do jardim. Vejo as marcas de graxa que ela deixa em seu caminho, o traçado de preto que ela abandona no seu passo, como uma serpente mortuária marcando os limites de um contorno que se quis afirmar meu. Vejo o molde que buscou me desenhar uma identidade fixa, como que resguardado num feitiço que me impus como proteção contra as magias negras que rodeavam meu mundo. Vejo meu pequeno coração sendo alimentado com aquele sangue preto, sem saber que, antes que ele pudesse sequer compreender, o haviam transfusionado um veneno amargo com que o enganaram, uma gosma daninha repleta de ódio a que deram o nome de amor. Vejo, mais além, a mata cerrada cheia de olhos amarelos a me mirar por entre as trevas, seus dentes caninos expostos a derramarem saliva ácida sobre as folhas que instantaneamente acobreiam e derretem, vertendo-se em cinzas sobre a grama queimada. Vejo como a serpente supostamente me protegeria com seu tracejar venenoso e entendo o feitiço que me lancei, ignorando a dor. Mas ele hoje me parece insuficiente. Parece mais uma prisão que uma proteção, embora confesse que, mesmo agora entre essas palavras, ainda me flagro de alguma forma estranhamente apegado à minha cela.

Creio que te escrevo por seres um passado mais fácil para encarar. De ti os traumas já haviam sido – a essa altura – quiçá resolvidos. Parece-me bom relembrá-los, sabê-los traumas e não deixar sua memória desaparecer por inteiro na sombra do passado, mas dentro deles parece ser preciso encontrar outros fantasmas que precisam ser enfrentados, outros demônios escondidos que guardam hábitos pútridos na minha memória muscular. E parece que consegui visitar, por intermédio das dores esquecidas de ti, outros infernos que não posso chamar de teus – sofrimentos impostos, por um lado, pelos (ditos) amores mais arcaicos da minha gênese e, por outro, pela minha própria tentativa de desfazê-los quando ainda não sabia sequer desatar nós. Parece que há outros eus ainda mais antigos pelos quais preciso derramar mais misericórdia e perdão. O processo não acaba aqui, contigo.

O que essa nova carta a ti me diz é que talvez eu possa ainda amar, quem sabe enfim um dia desencerrando em mim essa estanca velha e desatinando o coração em novas sangrias. Talvez ainda não totalmente – há, com certeza, muitos percalços que continuam escondidos entre as minhas palavras, muitos frutos podres acobertados pela densidade da minha ramagem. Mas, sem dúvida, amar mais – ao menos um pouco mais. Meu amor parece ter desamarrado mais um percalço, desatado mais essas cordas emboloradas e esfareladas que o continham e agora quase começa a se crer livre. Sinto nas minhas palavras uma leveza que há tempos não sentia. Sinto algo como uma sensação de infância nova, como se visse derreterem no meu jardim as viscosidades obscuras; como se estivesse aos poucos me desafeiçoando dos antigos laços e já me sentisse purificado o suficiente para sair à rua, correr em direção à lua e derreter sob o sol. Os olhos lúgubres da selva vão lentamente se fechando num sono milenar e ouço, ao longe, o chamado de uma nova corrente translúcida que parece abrir caminho em meio à mata, correndo não mais em círculos, mas num serpenteio vivo através do arvoredo. É estranho, mas quase acredito que ouço nela a minha própria voz, como um feitiço espelhado com o qual me convido para um novo aconchego.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Lamento

Toca distante,
No ecoar uivante dos montes
Em que derretem as minhas memórias,
Um sino.
Toca lamurioso,
Cheio de melancolia,
Como se tivesse saudades
De um outro dia
Há muito esquecido
– Há tanto que já nem me lembro
Se sequer existiu.
Seu eco retumbante me seduz,
Ressoa no meu peito
E encontra nele o ar em estado perfeito
De rarefação
Para reluzir uma sombra de monção,
Daquelas que criam no horizonte um inalcançável arco-íris
Lacrimejado no céu cinza e úmido.
Meu corpo hoje é todo canção,
Um cântico antigo
Escorrendo sobre as pedras,
Soprando pela grama
E se escondendo no desconhecido
Do meu coração.
Eu hoje sou todo antigo,
Sou monumento esquecido,
Dedicatória em ruína
Que restou de um mundo perdido
Cujas palavras jazem sumidas,
Sussurradas ao léu no vento
Que traceja seus resquícios na areia do chão.
E – é estranho – chega a ser bonito
Esse lamento escondido
Viajando silencioso na imensidão.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Soçobra

(Bon Iver & St. Vincent - Roslyn)

Meu amor se embola,
Encolhe e recolhe.
As ruas estão molhadas
Da chuva recém-lacrimejada,
Caída dos céus ‘inda gelada.
Meus pés tremem incertos
– É aqui que recomeço?
É aqui que me despeço
Dos outros caminhos
Que quiçá eu pudesse trilhar?
É aqui que termino, enfim,
Encurralado por mim?
Minhas escolhas desconexas
Não parecem me acertar.
Parece que me esqueço
E mal consigo me guardar.
As ruas verdejantes do verão
Salpicam minha memória inconcreta
– Povoam minha imaginação
Com seu odor de ocre
E de pólen
E de folhas úmidas de seiva
E do vento que vem distante,
Viajando desde o Camboja,
Carregando em si o calor da monção.
Mas aqui só sinto o sabor de cobre
Amolecendo-me
Adoecendo-me
Desfazendo minhas nobres mãos
Em galhos secos
Aplainados para a estéril reprodução.
Hoje eu queria a aurora,
A deusa primaveril Ostara
Florescendo do meu pão
Desabrochando nas minhas entranhas
E me colorindo
De dentro afora.
Queria ser quem um dia fui
E por isso hoje fui poeta;
Queria ser quem um dia creio que serei
E por isso sou profeta
Sabendo que navegarei
Os marasmos mais profundos
E inconclusos
E chegarei no destino que escolhi
Mesmo que de mim só sobre
O que soçobra
E se consegue levantar.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Olhar-Sussurro

São pequenos os detalhes que me movem.
Parecem os indícios de gastura
Na beirada dos degraus
De uma casa de gigantes.
Tão ínfimos que toda a minha vida
Parece murmurar
Sua pequena finitude
Em notas que apagam como um sopro
Relentado contra a voz dos anjos
Que voltejam num distante ecoar.
Eu sou mero grão na toca
E a minha mirada enfoca
Apenas o pequeno – o grande me sufoca
E me escapa por inteiro.
Prefiro, agora, esse olhar rasteiro:
Deitar o rosto sobre a terra,
Cobrir-me de pó
E ser meu chão;
Olhar a grama como arvoredo,
Os besouros como garças
E a vida como um breve amor primeiro.
As coisas assim me removem
Com muito mais facilidade
Mas, simultaneamente,
Assim me fazem
Mais sincero
Mais inteiro
E talvez, frente ao mistério derradeiro,
Essa mirada possa me salvar
Das enormes adversidades
Que povoam o universo
E os meus olhos altaneiros.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Amor Ocre

O teu amor tem um cheiro de déjà-vu que me faz acessar outros amores mais antigos entre os quais a memória ainda fresca de ti rapidamente se instala. É o odor das árvores ancestrais, dos olmos longevos que desenham de ocre a minha jornada pelos teus descaminhos; odor que me acomete com suas farpas finas – farpas frágeis ao toque, mas irrefreáveis no seu poder de perfuração; odor verde-musgo dos folículos delgados de pinheiro que facilmente amadeiram o ar que dança nos meus pulmões, seduzindo com sua beleza imemorial – mas que com igual espontaneidade se instalam dolorosos por entre as camadas da minha pele, pulsando nela uma ardência que oculta os vestígios do machucado.

É um cheiro que me faz querer entregar-me à desordem completa, ao caos de uma infância desgrenhada e cambaleante, de uma criança que caminha por entre estradas perfumadas sem conhecer os seus perigos. E assim ela vai, estabanada, tateando os carvalhos que ladeiam a passagem, abraçando os troncos e enchendo as mãos de arranhões prazerosos, beijando o líquen viscoso que se esconde por entre as lascas com os seus lábios delicados, sem sequer perceber desse passear vacilante o resultado.

A diferença é que hoje conheço os efeitos de uma tal jornada. Sei da inflamação que esse tocar desatento provoca; sei das longas horas, dos infindos dias que a cura desses percalços demanda. Já não sou tão criança, ainda que a lembrança do teu odor me faça, por um instante, querer ser. Desejo solenemente o abandono de mim; anseio por me esquecer e cair novamente por essas tuas vias que me esgotam; quero brincar de me conhecer por entre erros já cometidos, repetindo-os sem o mínimo conhecimento, como se me fossem inteiramente novos – como se novamente gozasse num jorro de novidade com as tuas ardidas perfurações em minha carne. Quase quero me entregar à jornada de ti para que me destruas.

Quase.

Pois a minha estatura não se-me permite. Olho-me no espelho disforme do rio e vejo os traços de água corrente, as linhas amansadas do seixo depositado no fundo de mim, e me reconheço desconhecido na idade. De repente a tua cor ocre não me importa. A emoção do passado revivido já passou. O desejo infantil de perfurar outra vez o dedo na roda da agulha parece-me insosso: o espinho tem uma aparência de madeira pútrida, coberta de mofo. Talvez aí esteja o segredo desse meu estado presente de ti: se teu odor me enfeitiça, por outro lado a visão dos teus desvios me desperta. Meus sentidos acessam estratos distintos de mim – eles levam a experiência de ti para átrios opostos da minha mente e, no choque de sensações, de repente me pareces exposto com demasiada veracidade. Já não vejo aventura em ti. Mas mentiria se ousasse dizer que assim mesmo não te desejo.

Pois que, mesmo estando tu assim exposto à vista, é a minha língua que anseia por passear sobre tua pele e engolir teu suor. Teu gosto me cativa como os sonhos antigos e apagados que se deseja rememorar para então transformar em matéria refeita: a memória afetiva de ti tem, afinal, sabor de gozos novos, ainda que neles se esconda o resquício do arcaico. E me parece que boa parte da novidade que sinto no gosto de ti vem não realmente de ti, mas de mim: percebo que minha língua se faz, agora que te encontra, de uma aspereza esguia, uma textura grossa e ácida que derrete os teus segredos e revela neles o macio oculto, a seiva que te esmeras em esconder. E encontro na tua fragilidade um perigo para você – tu, que não hás conhecido (como eu conheci) as memórias ancestrais do prazer. Parece-me que agora sou eu quem é perigoso a ti. Eu que, com um traço envenenado de verdades latentes e profundas, poderia, se quisesse, perfurar-te a casca enquanto tu tentas instalar teus ramos frágeis por entre as minhas fissuras. Pois as minhas fraquezas, as minhas vielas escuras, tu não as sabes achar com facilidade. Mas as tuas passagens não me são nada secretas.

Tu me amas como um rouxinol ferido. Teu canto me chega aos ouvidos como um lamento escondido enquanto tu passarinhas de peito estufado sobre o mundo. Pedes amor, mas só nas notas mais singelas do teu encanto, naquelas que te esmeras em disfarçar por entre as canções vultosas com que declamas a pretensa alegria do eterno prazer. E queres que eu te olhe cantar supostamente livre, ancorado no galho mais distante, enquanto revoadas em bando te circundam tentando chilrear-te em retorno a serenata de desamor. E te alegra pensar que eu te esteja mirando sob a copa das árvores, desejando ver teu pranto vertido em música junto com o meu. Mas que eu não ouse estender a mão! Eis aí qual seria o meu maior pecado. Tu me queres distante, longe o suficiente para que não se exponha o teu machucado. Queres manter sobre mim o poder do teu longínquo afago, demandando a minha presença apenas por um átimo, um instante de pouso encontrado. Mais do que isso e teu peito dói, e doer não é uma opção; mais do que isso e eu posso entender errado (é com essa ideia que te convences), posso querer mais do que me queres oferecer (e na verdade: mais do que podes verter de bom grado sem que o teu coração se derreta e comece a arder).

Conheço-te os descaminhos desse amor tortuoso, tão disforme que quase anti-amor. Já caminhei por muitas estradas que se-me ofereciam a mesma paisagem. Hoje sei navegá-las com mais segurança, ainda que em meu profundo pulse a esperança de me perder e esquecer o caminho de volta à proteção dos meus resguardos. A verdade é que por ti ainda guardo no peito esse desejo abjeto de me desfazer em perdição, como nos terríveis mitos de amor que cativaram durante Eras as gerações antepassadas de amantes. Quereria, talvez por alguns instantes, despetalar-me e assim me crer desabrochado; mas logo em seguida me lembro de mim, e o impulso passa tão rapidamente quanto se-me acometeu.

Eis então a minha ambiguidade de ti. Oscilo entre o rubro efervescente da carne que se desfibra de anseio e o amarelo dourado da minha iluminação, do meu abrigo ao sol que me sela e me salva do ímpeto de mim. E na mistura me faço de um amor cuja coloração é idêntica ao teu ocre dúbio e perfumado, desabrochando numa flor híbrida de laranja esquivo que esconde nas suas entranhas as raízes entrelaçadas da begônia vermelha e do girassol.

Mas a verdade é que essa alquimia amorosa de que me valho para te complementar não é a minha receita ideal. Essa diluição quimérica de um amor fadado a sedimentar é apenas a poção venenosa que pressinto ser do teu desejo, cuja demanda vejo desenhada nos teus cânticos que reivindicam um desamor anunciado numa profecia auto realizada. O meu verdadeiro amor tem a textura viscosa do mel; tem uma consistência que banha e enlaça na doçura oleosa das minhas palavras cobertas de saliva quente. Eu amo o amor secreto dos poetas do corpo, cuja alma transita concreta entre as linguagens da pele e do espírito; cuja língua devora e dá de comer à maneira dos deuses antigos em cujo longínquo reinado nenhum dos prazeres era proibido. O meu amar é o dos templos escondidos na selva, dos rituais esquecidos em cujos feitiços se faz um elixir de momentânea imortalidade; é o amar dos corpos nus e expostos à beira do mar – um mar cujas entranhas quentes ribombam em fúria para verter sobre a praia uma carícia espumada de borbulhas peroladas.

E este meu amor, se o quisesses, poderia ser teu, ainda que por uns instantes. Mas entendo como este sentimento feroz que ofereço possa ser perigoso a quem nunca o conheceu. Por isso não julgo tua resistência. Não julgo nem condeno. Por hoje, viveremos o amor ocre da segurança insegura que nos concatena; faremos amor sobre o muro e exporemos a nossa beleza com perigo e desconfiança. E há nesse outro amor, sem dúvida, poesia suficiente para nos saciar por uns dias. Mas por uns dias, apenas. O depois disso ao futuro pertence. E até lá, quedará no infinito desconhecido a promessa de outros amores mais profundos que eu declamaria por ti, se por acaso os nossos caminhos assim se fizessem.