quarta-feira, 24 de junho de 2020

Os muros de Jericó

Pensava esta noite sobre onde estamos
E talvez 2020 não seja a marcação ideal.
Por um momento cogitei que nem saímos de 2013
Quando de vez nos rachamos,
Mas nem isso parece real.
Lembrei que foi em 2008 a crise que desenhou
Nosso estado de sítio econômico
Que até aqui perdurou,
Mas também ele nasceu das entranhas de um 2001
Onde o terror impeliu que cedêssemos grandes poderes
Ao Estado que nos traicionou
Em favor de interesses especulativos.
Porém, nem isso me bastou.
Pois a semente de 2001 foi plantada em 89 e 91,
Quando a morte do comunismo deixou aberto o caminho
Para novos inimigos espreitarem o imaginário popular.
E se isso foi verdade, só o foi porque em 39
O nazismo tomou seus primeiros passos rumo ao distúrbio do mundo
Que eventualmente incorreu no seu próprio esfacelar.
Mas 39 foi filho da crise de 29,
Que por sua vez nasceu da Grande Guerra,
Que ela própria veio das revoluções disformes do século XIX,
Quando os Estado-nação - e o Brasil - se gestaram
Em conflitos de classe, de terra e de servidão.
E se tais processos surgiram, foi apenas porque em 1789
Eclodiu a primeira Revolução -
Se bem que cem anos antes também viera a Gloriosa
Embasada nos Cercamentos que gestaram o Capital
E nele todo o processo que nos distribuiu de forma tão desigual.
Mas eis que até mesmo os Cercamentos
Foram filhos de glórias outras - quando Elisabete venceu a Armada Espanhola
Tomando à Inglaterra os louros da hegemonia;
Hegemonia esta que a própria Espanha tomara de Portugal,
Que por aqui se firmou pelos idos de 1500.
Portugal que, aliás, se empoderou com o declínio das cidades-Estado italianas
Quando os otomanos ocuparam Constantinopla em 1453,
Enquanto elas, por sua vez, só cresceram (à despeito da Peste Negra)
Graças às novas rotas abertas pelas Cruzadas, iniciadas em 1096.
As Cruzadas que, sancionadas pela Igreja, só se puderam concretizar
Porque outrora Carlos Magno se propusera a Roma resguardar -
Isso só sendo possível já que seu avô Martel preservara a França da invasão Moura.
Parece, então, que até hoje o Ocidente guerreia o Oriente como em 732.
Ou talvez ainda sejamos romanos lutando para acreditar
Que o Império não se findou nas mãos de Odoacro em 476.
Se bem que o que é, afinal, ser romano?
Qual das vertentes cristãs lutando por dominação
Representamos no Sínodo de Milão?
Ou ainda nos cremos pagãos, dos tempos em que morreu Cômodo
Deixando vago o Império que até hoje se corrói em dilaceração?
Ou, quem sabe, estes sejam os frutos do golpe Augustano
Contra a República e o Senado - supostamente do povo -
Que representavam a natureza real do autêntico italiano?
Talvez, pior, este seja o mundo que resultou da derrota de Haníbal em Zama,
Ou dos fracassos de Pirro, ou da cobiça de Atenas
E a destruição da glória dos gregos!
Quem sabe isso tudo não seja a má-fortuna de Dario
E da Pérsia que desejou uma Grécia além do seu alcance.
Quem sabe isso tudo não seja ainda a crise do Bronze;
Quem sabe não somos faraós construindo Pirâmides
Sobre os corpos inúteis dos filhos da terra;
Quem sabe se nunca fora inventada a Escrita de Ur -
Ou talvez se Jericó nunca tivesse sido erigida...
Quem sabe se a agricultura não tornasse a humanidade à terra cingida...
Quem sabe aí, então, quedaríamos livres!
Talvez isso tudo ainda seja a luta entre duas tribos
Por abrigo e água fresca.
Mas aí já é estranho pensar que assim seja...
Pois, havendo hoje tamanha riqueza,
Faltaria explicar, afinal, por que após tanta História,
Tantos inventos e tanta glória
Ainda existem entre nós faraós nas Pirâmides envidraçadas
Dentro de Cercamentos escusos
Sobrevivendo a crise após crise com recursos de Estados falidos
Que nos vendem racismos antigos (mas bem polidos)
Feito os muros invisíveis de Jericó.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Alquimia de um sopro quente

(Chavela Vargas - Nosotros)

Hoje quando acordei
A textura do ar estava diferente.
Havia nela uma qualidade fibrosa,
Uma densidade viscosa de peso macio
Avolumando o mundo.
Esgueirava em seu sopro uma melancolia antiga,
Uma vida passada em déjà-vu -
Um reencarno de espírito em mente.
Era o amor
Que
Não sei por quem
Ou quais motivos além
Decidiu baixar sobre mim uma neblina espessa
E umedecer meus pulmões
Com monções verdes do seu líquen
Misterioso como a alquimia
Que funde substância e magia
Em sentidos agudos sem explicação.