terça-feira, 28 de junho de 2022

Dunas Estreladas

Essa noite eu me pergunto por você.
Será que daí, fora do tempo, podes me ver?
Será que à sombra do freixo,
No frescor orvalhado em que amanhece
Teu distante pensamento,
Entre as voltas pela lua
E as danças em plena rua -
Será que a memória nua
Da minha boca em boca tua
Nessa hora mais escura
Faz-se reaparecer?
Por onde andas, meu doce afago?
Por que grutas da vida te hás metido?
E, se encontras aqui comigo
Um caminho compartido,
Não me poupas um momento
- Um breve cruzamento -
De amável intento
- Ainda que a mil léguas,
Feito só de sentimento?
Se quiseres, nos encontramos
Apenas nas dunas estreladas
Dos sonhos partilhados
E por lá fazemos o amor
Que ainda ficou por fazer.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Limiar

Parece haver um limite muito tênue
Entre libertar-se do ódio
E tornar-se uma pessoa odiosa.
É preciso – é inegável – soltar a fúria
E não a deixar intoxicar.
Mas a raiva traz em sua passagem
Um rastro de destruição e violência,
De ideias absolutas
Que desejam totalizar a complexidade da vida
Numa simplicidade obtusa e odiosa.
Eis aí o perigo,
O limiar invisível e errante
Entre livrar-se da opressão
E tornar-se tal qual o opressor.
Há situações – e pessoas – odiosas,
Que oprimem e fazem despertar a necessidade de autoproteção;
E, frente a elas,
É imperativo ter ódio:
Frente a elas, odiar é a resposta apropriada.
Mas o ódio precisa ter direção,
Ter vazão concreta
E a intensidade de uma libertação.
É preciso que a raiva corra
E escorra
E saia,
Mas que não fiquem os resquícios
De uma convicção odiosa;
Que não restem os sedimentos
De uma noção enganosa
Que imagina ser todo o mundo
Feito de instâncias e gentes leprosas.
A raiva deve ser o sentimento
Que arranca o tampão da dor
E deixa restar, fluido e pleno,
O líquido do amor
Que corre nas minhas veias.