segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Curvado

Estou toda turva,
Toda curva,
Miúda e moída,
Dolorida de vida
Que me faz crescer
E de contra-vida
Que me quer vencer.
Estou toda retorcida,
Carcomida
Dos meus próprios
Inglórios vermes;
Estou caleidoscópio
Dos opróbrios
Velhos, óbvios
Que se escondem
Na minha pele.
Estou corcunda e torta,
Toda absorta
Na minha própria massa morta
Enquanto a vida à porta
Grita alto: "pouco importa
Se essa gruta te comporta!
A existência é mesmo assim,
Feito cobra de jardim
Serpenteando pela horta
Sem resposta
Até o fim."

domingo, 26 de dezembro de 2021

Pele

O teu calor me apossa
Quando encosta
Na minha pele;
E eu fico toda exposta
À insolação da tua derme.
A queimadura coça,
Pede mais, gritando: "roça
O mar de fogo no meu leme!
Me navega em labaredas,
Me atroça,
Me lança contra as rochas
Que meu corpo todo treme!"
Tua mão sobre minha coxa,
Na minha nuca,
Pelas costas
É blasfêmia suficiente
Pra ferver toda minha mente
Que te roga pecadora
- Impenitente -
Um arranhado,
Que me deixe aqui marcado
Eternamente
O esfumegado
Dessa tua sarça ardente.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Baluarte

Os silêncios e os pedregosos entulhos no caminho
São as sinas que se me intercalam.
Por meio deles meus sinos ora se calam,
Ora clamam os cantos que ecoam
Lamuriosos na catedral de mim,
Oscilando nas velas que brilham
Como oferendas no altar
- Como vagalumes no jardim.
Eu sou a interface da luz com o som,
O encontro entre o tato e o olfato,
A cor que vibra num tom
Que desce entre a língua e o palato
Em puro estado carmesim.
Eu sou a paz do templo
E o furor da monção;
Sou o prazer que alimento
E a graça da extrema unção.
Sou elixir e unguento,
Germinador e rebento;
Sou todas as coisas que tento,
Tudo aquilo a que atento
E, ainda assim, sou o vento:
Sou todo o relento
Por onde sopra a minha canção.
Eu sou a tocha que arde,
A luz que ela alarde
E, ao seu redor, sou a escuridão.
Eu sou o homem que parte,
A casa que fica, o caminho, o estandarte,
Sou os passos que o homem fia
E tudo o que ele vê pela via.
Eu sou, afinal, a íntima parte
Onde residem todos os versos
Que ao fim de seus rumos diversos
O poeta comparte.