segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O Ancoradouro

Recuso.
Preciso recusar.
Eu não reúso esses passados
Tão ancorados no naufrágio
Que já verteram em recife
De beleza in natura
Por sobre o velho metal.
Recuso. Recuso!
O cemitério não é meu adubo
Mesmo que lá deposite flores
Pelo meu antigo amar.
Recuso que se valha
A minha malha
Das agulhas do velho tear.
Prefiro que me morra
A melancolia amorosa
Se for pairar como espectro,
Adepta da vida em sono
E um profundo esperar.
Rechaço! Desfaço! Desuso
Todo sentimento espúrio
De apego paranormal
Que não me permite outro fuso
Onde o tempo me seja banal!
Recuso o tempo perpétuo
Que não traga nas suas entranhas
O calor do anti-tempo
Que anuncia o temporal.

domingo, 22 de setembro de 2019

A Espiral da Utopia


Eu sou todo feito de paixão e encantamento.
Eu sou o movimento no salão dançado desatento
Que tropeça e rodopia guiado pela mão
Da utopia em clarão,
Como aparição de Cristo,
Como a peça que insisto
Em viver dia sim, dia não.
Eu sou todo feito de viver e emoção.
Eu me revisto de entendimento
E até me afia o distanciamento
Que me tento em contramão,
Todavia o meu talento
É amar em melancolia.
A fina bruma que me guia
A passos lentos pela dança
De seguir feito criança
Na alegria que me avança
É essa rima que refia
Sempre que me desaprendo
Dos limites da tensão
E dissolvo novamente
Na voz da repetição
Que me move silenciosa
Nessa prosa da canção
Dos amores sem remorso
E sem motivo
E sem caução.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

A Minha Paixão Por G.H.

Terminei de ler A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, semana passada. Costumava brincar que esse livro era a minha baleia-branca – o meu grande objetivo de leitura inatingido, talvez inatingível. A primeira vez que tentei lê-lo foi há uns cinco anos, e ele me deixou completamente apavorado. Acabou paralisando meu interesse por romances por algum tempo – foquei por mais de um ano em outras leituras (poemas, crônicas, textos científicos ou jornalísticos). Tudo isso porque eu sabia que eu era G.H.. Nunca me senti tão profundamente identificado com uma personagem – seus anseios e questionamentos. Sabia que quem estava congelada ali entre a parede e a barata no armário era eu. Fugi dali, deixando a leitura incompleta.
Acredito que essa identificação tem tudo a ver com a forma que Clarice escreve. E penso que cada um de nós extrai algo de diferente da leitura de um livro, mas isso também muda dependendo da época em que o lemos. Quando mergulhei pela primeira vez na Paixão, cinco anos atrás, eu era outra pessoa. Estava imerso num niilismo profundo, totalmente desiludido da vida. Ler G.H. aos poucos esmiuçando a insignificância de tudo escondida naquela barata me deu a certeza de que o final do livro me revelaria meu próprio fim – e eu não estava preparado para lidar com isso.
Talvez eu devesse ter atentado ao breve alerta que a própria Clarice faz a possíveis leitores antes de começar a narrativa: “Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.”
Pois foi exatamente por esse processo que passei ao longo dos últimos cinco anos. Aos poucos fui substituindo o “não existe significado inerente” do niilismo massacrante pelo “não existe significado inerente” do existencialismo das infinitas possibilidades. Talvez seja difícil entender a diferença entre esses conceitos, mas é porque é difícil mesmo: é uma mudança que se constrói apenas com o tempo e a reflexão. Entender que eles são diferentes na leitura não é o mesmo que sabê-lo dentro do seu corpo, com cada músculo e osso.
Demorei o que parece ter sido uma vida para chegar aqui, e ser ateu com certeza não facilitou esse processo. Quando acreditamos no espiritual ou no divino, temos ferramentas mais claras e diretas para criar significados, mas nós ateus rejeitamos todas elas, e portanto temos que criar nossa significação praticamente do zero. É uma jornada penosa e frequentemente falha, e a chance de ficarmos presos num niilismo cruel e depressivo é grande. Li certa vez que os hindus pensam que o ateísmo é um estilo de vida possível, porém difícil. Tendo a concordar com essa perspectiva. Frequentemente ridicularizamos aqueles que nos dizem que, pelo ateísmo, nada tem sentido. Dizemos que eles não entenderam nada. Mas no fundo esse questionamento também nos corrói, pois nós seres humanos temos uma obsessão biológica por significado. Acreditar que esses significados são coisas construídas, não inerentes, pode ter implicações psicológicas muito pesadas se não soubermos lidar com essa crença.
Mas, para compensar, quando finalmente conseguimos construir nossa significação, ela se torna tão intrinsecamente rica e pessoal que pode se mostrar mais bem preparada para lidar com as complexidades da vida do que outros significados. O que não quer dizer que seja o único caminho, nem mesmo o melhor caminho – muitos chegam nesse lugar por outras vias; e na verdade creio que poucos ateus realmente chegam a esse ponto. A maioria se perde no caminho das frustrações niilistas e o ódio aos modelos pré-montados de significação das religiões. Porém, a perspectiva verdadeiramente existencialista do ateísmo tem o poder de criar uma neutralidade empática para com os sentidos de vida dos outros. Afinal, se todo significado é uma construção – inclusive o meu –, quem sou eu para criticar a construção alheia?
Toda essa divagação, enfim, para dizer que finalmente vivi essa mudança nos últimos anos. Aprendi a lidar com a depressão, a enxergar minha compreensão do “eu” como uma coisa passageira, a ser mais flexível com as minhas crenças sem abrir mão do meu senso crítico; enfrentei minhas limitações e cresci. Obviamente ainda tenho muito o que aprender – a vida, afinal, não é uma linha reta com um objetivo fixo no final. Mas parece que entendi como ser quem sou, conforme os meus eus vêm e vão. A isso, creio, se dá o nome “alma formada”, para usar as palavras de Clarice. Agora estava finalmente pronto para enfrentar minha baleia-branca.
Ajudou também o fato de ter começado a ler a Paixão em meio à minha pior crise de 2019. Ficou mais fácil acessar aquele ponto baixo de questionamento de tudo em que G.H. se encontra quando confrontada com a realidade da barata. No entanto, curiosamente, dessa vez cheguei a ele não com a perspectiva de quem se aterroriza com a inevitabilidade do fim, mas intrigado pela possibilidade de descobrir se, como eu, G.H. sobreviveria. E qual foi minha surpresa ao vê-la escapar das garras do niilismo para passar ao conforto desagradável e estranhamente alegre do existencialismo?
Ainda pretendo reler essa Paixão outras vezes, pois este claramente é um daqueles livros que pode se revelar de inúmeras formas a quem deseja explorá-lo. Mas quis compartilhar essa história de transformação e identificação, sabe lá se por querer fazer uma ode ao meu livro preferido, se pelo desejo de falar das coisas que amo e me movem, ou simplesmente porque queria escrever e é isso que está na minha mente essa semana. Talvez esse seja apenas um registro da minha jornada, uma tentativa de estender a mão para explicar em que acredito, já que nós ateus somos tão frequentemente incompreendidos pelo restante da sociedade - um diálogo interno que resolvi externalizar. Ou talvez seja, enfim, uma exposição dos meus significados para que eles possam ajudar quem ainda está no seu próprio processo de significação a enxergar uma luz no fim do túnel; a saber que a vida não acaba aprisionada entre a parede e a barata. De alguma forma, em algum momento, a gente pode se descobrir e a partir daí se construir. E quando isso finalmente acontece, não tem outra forma de descrever: é realmente apaixonante.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Estranhamento

Seria muito estranho eu confessar
Essa entranheza curiosa
Que escondo entre palavras inventadas
E omissões confusas
De olhares difusos,
Protegido em mãos ressabiadas,
Fugidas dos toques
E eventuais rebotes do pensamento
Que tende a escorregar
Para um inventamento irregular
De realidades obtusas
Onde eu possa te estranhar
Com delicadeza,
Sem embrenhar a língua
Por passagens avultadas
De linguagem bíblica
E dissonância clínica
Recusando a se contar,
Recuando a te contar
Do meu ininterrupto
Interrompido pelo teu passar.
Seria emaranhadamente estranho eu me entregar,
E ainda assim eu me emaranho.

sábado, 7 de setembro de 2019

O Nada


Eu tenho medo da morte.
Mas não é um medo qualquer – é pavor.
Eu sofro do horror
De perder tudo que tenho
– A vida.
Talvez a frieza clínica de dizê-lo assim
Não esclareça as minhas palavras...
Devia ser poeta,
Mas luto contra algo que me pede objetividade,
Que demanda que eu respire fundo
E me acalme nas certezas
Que em verdade eu sei inconcretas –
Porém devo tornar palpáveis.
É um estranho balanço...
Eu sei que a vida é finita
E a morte inevitável;
Sei que amo a vida
E quero gritá-la
E gritá-la
E amá-la,
Mas se não me convenço que vivo
Ainda agora –
Mais um pouco,
Outro pouco
E mais outro –,
A vida se me despedaça
E eu apodreço em desespero desenfreado;
Se me desequilibro,
Temo que tudo esteja terminado
E aí de que vale uma vida
De horrores aglutinados?
Eu já flertei com a morte...
Seria mentira dizer
Que em seus braços nunca dancei.
Quando o amor que eu achava que tinha
E me sustinha
Não pôde me comparecer,
Eu a desejei.
Eu era frágil, tão frágil,
E os horrores que assombram a vida
Tão mais facilmente podiam me derreter.
Em seu consolo eu me entretinha
E cria que seu abraço poderia me satisfazer.
Quanto engano...
No dia em que ela veio
Eu me vi ainda mais horrorizado
Do que por quaisquer dores
Que a vida até então me dera.
Lembrei de todos os temores
Que da morte enfrentei
E entendi quão grande é o dote
Que a vida me ofereceu.
O que sempre desejei, afinal,
No meu flerte constante
Foi o silêncio,
Tão tristemente confundido
Com a absoluta quietude.
O que quero é o som de nada
Reverberando em tudo.
Eu quero a paz que me desnude
E grude no corpo
Até infiltrar meus poros
E me ser inteiro –
Não! Quero que brote de dentro
E vaze dos poros
E rasgue minhas vestes
E me desnude de dentro pra fora
E me seja por inteiro.
Mas quero que seja em silêncio
Sem o viés passageiro
Das alegrias.
Eu quero a paz que me tome
Na leveza do nada
E me faça esquecer
Todo anseio.
Eu quero que o 'quero' me suma
E em seu lugar 'eu' se faça
A doce vontade do nada
E o seu descansar verdadeiro.