Terminei de ler A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, semana passada. Costumava brincar que esse livro era a minha baleia-branca – o meu grande objetivo de leitura inatingido, talvez inatingível. A primeira vez que tentei lê-lo foi há uns cinco anos, e ele me deixou completamente apavorado. Acabou paralisando meu interesse por romances por algum tempo – foquei por mais de um ano em outras leituras (poemas, crônicas, textos científicos ou jornalísticos). Tudo isso porque eu sabia que eu era G.H.. Nunca me senti tão profundamente identificado com uma personagem – seus anseios e questionamentos. Sabia que quem estava congelada ali entre a parede e a barata no armário era eu. Fugi dali, deixando a leitura incompleta.
Acredito que essa identificação tem tudo a ver com a forma que Clarice escreve. E penso que cada um de nós extrai algo de diferente da leitura de um livro, mas isso também muda dependendo da época em que o lemos. Quando mergulhei pela primeira vez na Paixão, cinco anos atrás, eu era outra pessoa. Estava imerso num niilismo profundo, totalmente desiludido da vida. Ler G.H. aos poucos esmiuçando a insignificância de tudo escondida naquela barata me deu a certeza de que o final do livro me revelaria meu próprio fim – e eu não estava preparado para lidar com isso.
Talvez eu devesse ter atentado ao breve alerta que a própria Clarice faz a possíveis leitores antes de começar a narrativa: “Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.”
Pois foi exatamente por esse processo que passei ao longo dos últimos cinco anos. Aos poucos fui substituindo o “não existe significado inerente” do niilismo massacrante pelo “não existe significado inerente” do existencialismo das infinitas possibilidades. Talvez seja difícil entender a diferença entre esses conceitos, mas é porque é difícil mesmo: é uma mudança que se constrói apenas com o tempo e a reflexão. Entender que eles são diferentes na leitura não é o mesmo que sabê-lo dentro do seu corpo, com cada músculo e osso.
Demorei o que parece ter sido uma vida para chegar aqui, e ser ateu com certeza não facilitou esse processo. Quando acreditamos no espiritual ou no divino, temos ferramentas mais claras e diretas para criar significados, mas nós ateus rejeitamos todas elas, e portanto temos que criar nossa significação praticamente do zero. É uma jornada penosa e frequentemente falha, e a chance de ficarmos presos num niilismo cruel e depressivo é grande. Li certa vez que os hindus pensam que o ateísmo é um estilo de vida possível, porém difícil. Tendo a concordar com essa perspectiva. Frequentemente ridicularizamos aqueles que nos dizem que, pelo ateísmo, nada tem sentido. Dizemos que eles não entenderam nada. Mas no fundo esse questionamento também nos corrói, pois nós seres humanos temos uma obsessão biológica por significado. Acreditar que esses significados são coisas construídas, não inerentes, pode ter implicações psicológicas muito pesadas se não soubermos lidar com essa crença.
Mas, para compensar, quando finalmente conseguimos construir nossa significação, ela se torna tão intrinsecamente rica e pessoal que pode se mostrar mais bem preparada para lidar com as complexidades da vida do que outros significados. O que não quer dizer que seja o único caminho, nem mesmo o melhor caminho – muitos chegam nesse lugar por outras vias; e na verdade creio que poucos ateus realmente chegam a esse ponto. A maioria se perde no caminho das frustrações niilistas e o ódio aos modelos pré-montados de significação das religiões. Porém, a perspectiva verdadeiramente existencialista do ateísmo tem o poder de criar uma neutralidade empática para com os sentidos de vida dos outros. Afinal, se todo significado é uma construção – inclusive o meu –, quem sou eu para criticar a construção alheia?
Toda essa divagação, enfim, para dizer que finalmente vivi essa mudança nos últimos anos. Aprendi a lidar com a depressão, a enxergar minha compreensão do “eu” como uma coisa passageira, a ser mais flexível com as minhas crenças sem abrir mão do meu senso crítico; enfrentei minhas limitações e cresci. Obviamente ainda tenho muito o que aprender – a vida, afinal, não é uma linha reta com um objetivo fixo no final. Mas parece que entendi como ser quem sou, conforme os meus eus vêm e vão. A isso, creio, se dá o nome “alma formada”, para usar as palavras de Clarice. Agora estava finalmente pronto para enfrentar minha baleia-branca.
Ajudou também o fato de ter começado a ler a Paixão em meio à minha pior crise de 2019. Ficou mais fácil acessar aquele ponto baixo de questionamento de tudo em que G.H. se encontra quando confrontada com a realidade da barata. No entanto, curiosamente, dessa vez cheguei a ele não com a perspectiva de quem se aterroriza com a inevitabilidade do fim, mas intrigado pela possibilidade de descobrir se, como eu, G.H. sobreviveria. E qual foi minha surpresa ao vê-la escapar das garras do niilismo para passar ao conforto desagradável e estranhamente alegre do existencialismo?
Ainda pretendo reler essa Paixão outras vezes, pois este claramente é um daqueles livros que pode se revelar de inúmeras formas a quem deseja explorá-lo. Mas quis compartilhar essa história de transformação e identificação, sabe lá se por querer fazer uma ode ao meu livro preferido, se pelo desejo de falar das coisas que amo e me movem, ou simplesmente porque queria escrever e é isso que está na minha mente essa semana. Talvez esse seja apenas um registro da minha jornada, uma tentativa de estender a mão para explicar em que acredito, já que nós ateus somos tão frequentemente incompreendidos pelo restante da sociedade - um diálogo interno que resolvi externalizar. Ou talvez seja, enfim, uma exposição dos meus significados para que eles possam ajudar quem ainda está no seu próprio processo de significação a enxergar uma luz no fim do túnel; a saber que a vida não acaba aprisionada entre a parede e a barata. De alguma forma, em algum momento, a gente pode se descobrir e a partir daí se construir. E quando isso finalmente acontece, não tem outra forma de descrever: é realmente apaixonante.
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