segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Ícaro

Flameja, mariposa,
Do alto da tua enganação -
Pois restou-lhe saber que o sol
Não é para todos,
E aos que não são seus
Ele é elétrico e perigoso.

domingo, 28 de outubro de 2018

Suspiro

Ouve agora, meu querido, o que vou te dizer:
Mas ouve atento que essa fala é um suspiro delicado
Que desmancha na brisa.
Ouve com cuidado que ele vibra fino
Na umidade do ar.
Aluga teu ouvido colado aos meus lábios
Que eles vão te contar da deusa que sirvo -
A deusa dos poetas
Que atende por muitos nomes
E que com seus versos livres
Estremece teu corpo
Como se fosses por dentro um furacão.
Ouve bem, pois nesse arrepio a deusa te diz
Que a pequenez do teu suspiro
É a tempestade que encharca o mundo.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

As Estrelas No Chão

É tarde na noite
E eu letargi.
Sinto os sentidos esvaindo da ponta dos dedos,
Como se dependurasse os braços entortados
Para fora do dorso -
Ou talvez sejam as pílulas que entornei,
Os papéis que cortei com a língua
Para me declamar melhor.
A noite avança errática a cambalear;
As estrelas estão tremendo,
Riscando o céu e o chão molhado,
Mas ninguém parece se importar.
Pisam seu brilho como se nada fosse
E ainda cacarejam entre gargalhadas
Pensando ser sãos.
Eu os desprezo, demônios!
Como ousam dançar sobre os corpos celestes?
Imaginam de terra o firmamento?
Ratos! Criaturas vis!
A ordem do mundo não vos permite essa insanidade!
O mundo está de ponta cabeça
Mas eu não vi a Terra girar.

- Eles roeram o ventre da Mãe que os gestou, então reviraram suas entranhas para deixá-la do avesso e requentar o mundo com sua rebelião.

Assustei-me com essa fala repentina.
Olhei à minha direita, e era uma fada a me complementar.
Teria eu pensado em voz alta?

- Não. Ouço tua voz interior... Ela vaza dos teus olhos, tão belos olhos cheios de dor!

E que te dizem meus olhos doloridos?

- Dizem do teu horror a esses tempos perdidos; da tristeza em ver tanta água de chuva gasta em vão, apenas para refletir na terra os astros, e sobre estes a perdição. Eu entendo, meu pequeno. O mundo dos humanos está de fato ao avesso: sofrem a existência, mas recusam a atadura que ofereço.

Agora entendi!
Esta não é uma simples fada,
É a própria Mãe Natureza quem me fala!
Ó, Mãe de todas as coisas, perdoa-me!
Se antes soubera o tamanho da profanidade
Que aflige tua criação,
Há tempos teria me levantado por indignação!
Mas leva-me, ó Mãe, de volta ao ventre!
Se necessário queima esses vermes
Que contra ti se levantaram,
Mas, ao menos a mim, me retorna
Ao Éden de onde outrora
Meus antepassados caíram pela tentação!

- É este o teu desejo: voltar ao estado das coisas antigas, e que sejam punidos aqueles que contra a ordem das estrelas atentaram?

Sim! Este é o meu desejo.

- Assim seja. Eu, Ramnúsia, deusa da retribuição, ponho sobre ti minha atadura, e, atados os olhos, comando que residam em ti as tuas palavras. Ordeno que voltes ao estado antigo dos humanos, andando de quatro sobre o chão; e que seja dolorido esse andar por profanares com ainda mais patas o solo onde as estrelas refletirão. Decreto, por fim, que tua mente retorne ao ventre da Terra em pagamento por toda vida que Ela germinou, e lá nas trevas eternas te atormentes pela húbris que sobre si conjurou.

domingo, 14 de outubro de 2018

Hoje Tive Uma Realização

Hoje tive uma percepção
Que diz com terrível frieza
Algo sobre mim.

Hoje achei que não gostava de chuva.

Mas logo em seguida fantasiei
Sobre chuvas perfeitas
Em lugares mais românticos
Ou onde pudesse ouvi-la cair
Fazendo sons que se completassem
Nos relances que eu lhe desse
Por uma janela
Onde a admirasse melhor.

De repente lembrei de um banho de chuva
Que tomei em completa alegria
E quanto ele me fez bem...

Então olhei novamente para dentro

E para meu desespero vi
Que eu não gosto da chuva aqui
Pois não gosto de onde estou.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Estado de Garça

Talvez na verdade eu não queira
Servir de apoio a quem não me apoiou.
Apoiar, apoiou -
Mas não no que importa
Quando importou.
Talvez o estrago já esteja feito
E agora só nos reste existir
Nessa vida miserável de aceitação,
Dessas migalhas de atenção.
Eu sei que nada disso precisa ser verdade -
Saber, sei -
Mas querer é outra história.
Eu não nasci pra Cristo
E o infinito perdão,
Nem espero o mesmo martírio
E abnegação.
Espero, apenas;
Espero que o tempo passe
E eu alcance um novo estado de graça
Onde o perdão seja mais fácil -
Mesmo sabendo que na vida nada funciona assim -
Mesmo sabendo que no estado de graça só se chega com perdão.
Talvez me falte aceitar
Que não passa de ilusão morta
O estado de garça - de beleza sem emoção -
Paralisada num mundo a-histórico.
Talvez ainda falte em mim o mecanismo que permite bloquear o ódio
E filtrar dele a fundação
Para abraçá-la
E desmontá-la
Com perdão.
Que os deuses me perdoem pela dificuldade
Em dar tão pequeno passo de aceitação!
Que os deuses me perdoem,
E perdoado eu encontre forças.