sábado, 23 de março de 2019

Dança do Espelho II

(Madonna - Frozen)

Anos atrás pedi ao Universo um espelho
Onde pudesse mergulhar
Para me enxergar mais inteiro.
Hoje escrevo apenas para constatar
O quanto é engraçado perceber
Que o espelho já estava lá
E foi em sua superfície que escrevi meu desejo.
O que me faltava
Era tão somente o olhar
De quem é experiente na arte de mergulhar
Nas palavras e suas pessoas.

sexta-feira, 15 de março de 2019

O Navegante e o Furacão

(Escrita em 09 de Março de 2019)

Passamos, ao longo da vida, por muitos momentos definidores. Gosto de acreditar que somos um punhado de microescolhas a se acumularem no tempo, mas é inegável que de vez em quando vivenciamos uma ou outra experiência com o potencial de transformar intensamente a nossa jornada. Ou, no mínimo, são encruzilhadas que testam o limite da nossa capacidade de lidar com mudanças, e com isso acabam nos contando algo sobre nós mesmos. O mais recente desses tais momentos que enfrentei foi a chegada à faculdade.
Estava muito nervoso. Sentia o coração palpitando por todo o corpo: o pulmão parecia inchado, a respiração trêmula, os braços faziam um grande esforço para disfarçar uma postura natural - como se não estivessem rígidos na tensão da tranquilidade simulada - e as pernas, meio bambas, tentavam manter a compostura. Por dentro, tudo gritava o turbilhão de quem mergulha pela primeira vez numa vida nova - um ambiente diferente, cheio de gente desconhecida e lugares inexplorados. Por fora, tentava fazer pose de despreocupado. Mas essa era uma daquelas circunstâncias em que, dada a bagunça interior, dificilmente se consegue controlar o que o corpo fala. Quem sabe parecesse frio ou sério demais. Porém - e isso é o mais provável -, talvez sequer conseguisse esconder qualquer coisa: estava nervoso e era evidente.
Mas o medo não era de todo ruim. Havia nele um elemento de desbravamento, uma essência de descobridor português que, a bordo da nau, enxergou a terra-mãe uma última vez e se virou audaciosamente para fitar a imensidão do mar. Eu temia o mundo por desejá-lo, sem saber o que meu anseio encontraria no horizonte, e esse sentimento me dizia para vasculhar a vastidão do Oceano à procura de um porto escondido onde me ancorar. Convenci-me, então, a levantar os olhos. Fi-lo silenciosamente, como quem examina um espaço à procura de conhecidos ainda não encontrados, tentando se encaixar num olhar certeiro, que combina com o seu próprio, enquanto desvia dos outros, que lhe negam pertencimento.
Achei! Ele estava perto dos arbustos, mochila nas costas, cigarro numa mão, celular na outra, o rosto fixado na tela com o mesmo semblante que eu próprio carregava uns segundos antes... Usava roupas próximas ao meu gosto, tinha um corte de cabelo similar ao meu (talvez nem tanto, mas a essa altura já intentava nos astros o desenho das nossas igualdades)... Expressávamos identidades semelhantes. Desejei falar com ele. Desejei muito. Mas meus pés não se moviam; a boca se mordia. Talvez fôssemos excessivamente parecidos e isso fosse uma coisa ruim. Talvez nossos assuntos pendessem inevitavelmente ao trivial e curto, sem o poder de aprofundamento discursivo que invejo e desejo em outras pessoas, e acabasse pairando no ar um silêncio de frustração. Por outro lado, talvez fôssemos, na verdade, diferentes demais, e se eu mergulhasse a fundo em um assunto alheio ao seu interesse... Frustração novamente. Acabei cedendo ao lado negativo do meu medo - em vez de desbravador, permaneci ilhado.
Caminhei cabisbaixo em minha derrota interior rumo à sala de aula. Tinha ainda a polvorosa de sentimentos fervilhando dentro de mim, mas já não me cria capaz de procurar uma abertura. Talvez eu estivesse fadado a ser um navegador perdido no Triângulo das Bermudas. Foi quando, de súbito, me abordaram perguntando qual era minha turma. A resposta me saiu com quase a mesma velocidade em que emendei nela uma pergunta de reciprocidade, e depois outra, e mais outra. As palavras começaram a me saltar da boca como se eu fosse um furacão que estivera silenciosamente preso dentro de um balão: bastava uma cutucada para estourar e cobrir as Bermudas por inteiro - e junto com elas todo o Caribe. De repente me sentia capaz de conversar com qualquer um, até mesmo com ele com quem antes desejara falar porém não conseguira. Descobri, inclusive, que de fato temos muitas semelhanças.
Mas descobri também - e isso é mais importante - que a abertura muitas vezes se cria em vez de procurar. Não sei contar quantas pessoas encontrei depois disso na mesma posição em que há tão pouco tempo me encontrara; quantos furacões em balão tive coragem de furar. Nem sempre consigo fazê-lo, mas o medo vai sendo aos poucos enfrentado. Afinal, aprendi nessa encruzilhada da vida que, no fundo, todos tememos da mesma forma - com um desejo receoso.

Tolice

(Maria Bethânia - Negue)

Não sei quem é mais tolo:
Eu, por acreditar
Em qualquer coisa que fosse
Escondida atrás do teu falar;
Por vender meu carinho
Tão barato na rua
Havendo em mim um poço tão fundo
Onde despejar meu próprio amor;
Por esquecer que esse profundo
Só eu sei sustentar;
Por me deixar vazar em excesso no mundo
E pagar sozinho a conta do furacão...
Ou você,
Por não entender a rota dos rios da minha vazão;
Por não saber o tão pouco e pequeno
Que eu cria que você sabia.
Não... Tolo sou eu.
Já vivi o suficiente para entender
Que o meu coração tensiona
Com força demais para sobrar espaço
Para a compreensão.
Eu compreendo.
Eu sei que o mundo é bruto
E rasga a carne de quem se mostra.
Eu sei que saber de amor
Não é pouco nem pequeno
- Me desculpe pela acusação;
Na verdade é uma construção
De anos seguindo um mesmo caminho
A partir de um ponto fixo
Que só eu conheço e conhecerei.
Amor, afinal, no genérico como o digo,
Não é nada generalista -
É o meu amor
Como os deuses quiseram que eu.
Eu entendo
E hoje sou forte o suficiente
Para não sofrer por me abrir
E dar de cara num muro;
Hoje atravesso muros e sigo em frente
Satisfeito com o fato que, por um segundo,
Desmaterializei tuas defesas
E aprendi você.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Bronze

Estou polido demais,
Parado
Num belo contemplativo
Distante e grego
Que nada passa, nada comunica
Ali, impassivo
Intimidante
Sem me prestar ao papelão de sangrar
Em nome do barro
E me remodelar;
Sem arrancar do olhar as travas da porta...
Sem entrega nenhuma.
Que beleza pode haver nisso?
Que admiração pode realmente existir no pedestal
Pedindo um beijo aos pés
Sem estender a mão
E se sujar de pele?
Eu quero ser sujo,
Quero ser imundo!
Quero ser enlameado de mundo grosso e escuro!
Quero falar sem medir as palavras milimétricas,
Que me entendam mal e profano,
Quero tocar com a malícia dos demônios sexuais
E devorar a terra
Com meus papéis carnais.