terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Olhar-Sussurro

São pequenos os detalhes que me movem.
Parecem os indícios de gastura
Na beirada dos degraus
De uma casa de gigantes.
Tão ínfimos que toda a minha vida
Parece murmurar
Sua pequena finitude
Em notas que apagam como um sopro
Relentado contra a voz dos anjos
Que voltejam num distante ecoar.
Eu sou mero grão na toca
E a minha mirada enfoca
Apenas o pequeno – o grande me sufoca
E me escapa por inteiro.
Prefiro, agora, esse olhar rasteiro:
Deitar o rosto sobre a terra,
Cobrir-me de pó
E ser meu chão;
Olhar a grama como arvoredo,
Os besouros como garças
E a vida como um breve amor primeiro.
As coisas assim me removem
Com muito mais facilidade
Mas, simultaneamente,
Assim me fazem
Mais sincero
Mais inteiro
E talvez, frente ao mistério derradeiro,
Essa mirada possa me salvar
Das enormes adversidades
Que povoam o universo
E os meus olhos altaneiros.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Amor Ocre

O teu amor tem um cheiro de déjà-vu que me faz acessar outros amores mais antigos entre os quais a memória ainda fresca de ti rapidamente se instala. É o odor das árvores ancestrais, dos olmos longevos que desenham de ocre a minha jornada pelos teus descaminhos; odor que me acomete com suas farpas finas – farpas frágeis ao toque, mas irrefreáveis no seu poder de perfuração; odor verde-musgo dos folículos delgados de pinheiro que facilmente amadeiram o ar que dança nos meus pulmões, seduzindo com sua beleza imemorial – mas que com igual espontaneidade se instalam dolorosos por entre as camadas da minha pele, pulsando nela uma ardência que oculta os vestígios do machucado.

É um cheiro que me faz querer entregar-me à desordem completa, ao caos de uma infância desgrenhada e cambaleante, de uma criança que caminha por entre estradas perfumadas sem conhecer os seus perigos. E assim ela vai, estabanada, tateando os carvalhos que ladeiam a passagem, abraçando os troncos e enchendo as mãos de arranhões prazerosos, beijando o líquen viscoso que se esconde por entre as lascas com os seus lábios delicados, sem sequer perceber desse passear vacilante o resultado.

A diferença é que hoje conheço os efeitos de uma tal jornada. Sei da inflamação que esse tocar desatento provoca; sei das longas horas, dos infindos dias que a cura desses percalços demanda. Já não sou tão criança, ainda que a lembrança do teu odor me faça, por um instante, querer ser. Desejo solenemente o abandono de mim; anseio por me esquecer e cair novamente por essas tuas vias que me esgotam; quero brincar de me conhecer por entre erros já cometidos, repetindo-os sem o mínimo conhecimento, como se me fossem inteiramente novos – como se novamente gozasse num jorro de novidade com as tuas ardidas perfurações em minha carne. Quase quero me entregar à jornada de ti para que me destruas.

Quase.

Pois a minha estatura não se-me permite. Olho-me no espelho disforme do rio e vejo os traços de água corrente, as linhas amansadas do seixo depositado no fundo de mim, e me reconheço desconhecido na idade. De repente a tua cor ocre não me importa. A emoção do passado revivido já passou. O desejo infantil de perfurar outra vez o dedo na roda da agulha parece-me insosso: o espinho tem uma aparência de madeira pútrida, coberta de mofo. Talvez aí esteja o segredo desse meu estado presente de ti: se teu odor me enfeitiça, por outro lado a visão dos teus desvios me desperta. Meus sentidos acessam estratos distintos de mim – eles levam a experiência de ti para átrios opostos da minha mente e, no choque de sensações, de repente me pareces exposto com demasiada veracidade. Já não vejo aventura em ti. Mas mentiria se ousasse dizer que assim mesmo não te desejo.

Pois que, mesmo estando tu assim exposto à vista, é a minha língua que anseia por passear sobre tua pele e engolir teu suor. Teu gosto me cativa como os sonhos antigos e apagados que se deseja rememorar para então transformar em matéria refeita: a memória afetiva de ti tem, afinal, sabor de gozos novos, ainda que neles se esconda o resquício do arcaico. E me parece que boa parte da novidade que sinto no gosto de ti vem não realmente de ti, mas de mim: percebo que minha língua se faz, agora que te encontra, de uma aspereza esguia, uma textura grossa e ácida que derrete os teus segredos e revela neles o macio oculto, a seiva que te esmeras em esconder. E encontro na tua fragilidade um perigo para você – tu, que não hás conhecido (como eu conheci) as memórias ancestrais do prazer. Parece-me que agora sou eu quem é perigoso a ti. Eu que, com um traço envenenado de verdades latentes e profundas, poderia, se quisesse, perfurar-te a casca enquanto tu tentas instalar teus ramos frágeis por entre as minhas fissuras. Pois as minhas fraquezas, as minhas vielas escuras, tu não as sabes achar com facilidade. Mas as tuas passagens não me são nada secretas.

Tu me amas como um rouxinol ferido. Teu canto me chega aos ouvidos como um lamento escondido enquanto tu passarinhas de peito estufado sobre o mundo. Pedes amor, mas só nas notas mais singelas do teu encanto, naquelas que te esmeras em disfarçar por entre as canções vultosas com que declamas a pretensa alegria do eterno prazer. E queres que eu te olhe cantar supostamente livre, ancorado no galho mais distante, enquanto revoadas em bando te circundam tentando chilrear-te em retorno a serenata de desamor. E te alegra pensar que eu te esteja mirando sob a copa das árvores, desejando ver teu pranto vertido em música junto com o meu. Mas que eu não ouse estender a mão! Eis aí qual seria o meu maior pecado. Tu me queres distante, longe o suficiente para que não se exponha o teu machucado. Queres manter sobre mim o poder do teu longínquo afago, demandando a minha presença apenas por um átimo, um instante de pouso encontrado. Mais do que isso e teu peito dói, e doer não é uma opção; mais do que isso e eu posso entender errado (é com essa ideia que te convences), posso querer mais do que me queres oferecer (e na verdade: mais do que podes verter de bom grado sem que o teu coração se derreta e comece a arder).

Conheço-te os descaminhos desse amor tortuoso, tão disforme que quase anti-amor. Já caminhei por muitas estradas que se-me ofereciam a mesma paisagem. Hoje sei navegá-las com mais segurança, ainda que em meu profundo pulse a esperança de me perder e esquecer o caminho de volta à proteção dos meus resguardos. A verdade é que por ti ainda guardo no peito esse desejo abjeto de me desfazer em perdição, como nos terríveis mitos de amor que cativaram durante Eras as gerações antepassadas de amantes. Quereria, talvez por alguns instantes, despetalar-me e assim me crer desabrochado; mas logo em seguida me lembro de mim, e o impulso passa tão rapidamente quanto se-me acometeu.

Eis então a minha ambiguidade de ti. Oscilo entre o rubro efervescente da carne que se desfibra de anseio e o amarelo dourado da minha iluminação, do meu abrigo ao sol que me sela e me salva do ímpeto de mim. E na mistura me faço de um amor cuja coloração é idêntica ao teu ocre dúbio e perfumado, desabrochando numa flor híbrida de laranja esquivo que esconde nas suas entranhas as raízes entrelaçadas da begônia vermelha e do girassol.

Mas a verdade é que essa alquimia amorosa de que me valho para te complementar não é a minha receita ideal. Essa diluição quimérica de um amor fadado a sedimentar é apenas a poção venenosa que pressinto ser do teu desejo, cuja demanda vejo desenhada nos teus cânticos que reivindicam um desamor anunciado numa profecia auto realizada. O meu verdadeiro amor tem a textura viscosa do mel; tem uma consistência que banha e enlaça na doçura oleosa das minhas palavras cobertas de saliva quente. Eu amo o amor secreto dos poetas do corpo, cuja alma transita concreta entre as linguagens da pele e do espírito; cuja língua devora e dá de comer à maneira dos deuses antigos em cujo longínquo reinado nenhum dos prazeres era proibido. O meu amar é o dos templos escondidos na selva, dos rituais esquecidos em cujos feitiços se faz um elixir de momentânea imortalidade; é o amar dos corpos nus e expostos à beira do mar – um mar cujas entranhas quentes ribombam em fúria para verter sobre a praia uma carícia espumada de borbulhas peroladas.

E este meu amor, se o quisesses, poderia ser teu, ainda que por uns instantes. Mas entendo como este sentimento feroz que ofereço possa ser perigoso a quem nunca o conheceu. Por isso não julgo tua resistência. Não julgo nem condeno. Por hoje, viveremos o amor ocre da segurança insegura que nos concatena; faremos amor sobre o muro e exporemos a nossa beleza com perigo e desconfiança. E há nesse outro amor, sem dúvida, poesia suficiente para nos saciar por uns dias. Mas por uns dias, apenas. O depois disso ao futuro pertence. E até lá, quedará no infinito desconhecido a promessa de outros amores mais profundos que eu declamaria por ti, se por acaso os nossos caminhos assim se fizessem.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Desejos de Vida e Morte

Se ao menos houvesse no mundo
Uma penumbra de luz
Onde as penúrias obscuras da alma
Se escondessem iluminadas,
Expostas,
Enamoradas no encontro encantado
Do sonho com a realidade...
Se ao menos do ser humano
Houvesse um pedaço de humanidade
Onde os desejos retintos
Transparecessem
E se amolecessem,
Extintos pelo seu próprio desfazer
Mergulhado em prazer,
Engolfado em alegrias e lágrimas
Que escorressem por sobre meu Ser
Sem dúvidas ou convicções...
Se ao menos as assombrações do espírito
Se materializassem
E caíssem maduras como frutos famintos,
Ávidas por cultivar o chão
E brotar nele a vida que nasce da morte rarefeita
E enfeita a boca da terra
Com as flores da sua eclosão...
Se ao menos dos sonhos restasse
O pedaço do nada
Que transita entre o sono e a vigília
E me desperta com tudo que me completa,
Se ao menos desse lodo de inconsciência
Desabrochasse um fado
Cantado nas vozes secretas da realização...
Então eu estaria encontrado,
Restaria enfim contradito
Na minha declamação
E a vida teria sentido
E eu poderia morrer.
Mas, do fundo desse meu luto
Repleto de contemplação,
Ainda brotaria incompleto
Um ramo de perturbação;
E enraizado nele eu reviveria
Um anseio abjeto
Que me incomodaria uma grata nova caução
Que eu perseguiria
A bordo da minha nau
Navegando as violentas ondas do mundo
Num eterno estado de confrontação.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Segredo

Eis aqui um segredo
A ti confiado
Em um estado
De silencioso degredo:
Foi o teu afago
Entregue de soslaio,
Escondido nos teus olhos,
No teu corpo defensivo
E no que você omitiu, calado,
Que me deixou cativado.
Foi a tua entrega,
A tua doçura disfarçada,
A tua boca adocicada
Que me tirou o chão.
Foi o teu abraço,
O teu sensível laço,
Que me tirou do tempo e espaço
E me enfeitiçou.
Foi o teu amar secreto,
Discreto e machucado
Que me fez desarmado
E roubou meu coração.
E assim que,
Quando penso nas andanças
E nas danças sob a lua,
São tuas as lembranças
Que me assombram
De um desejo de viver
E reviver contigo
Os passos escondidos
E fazê-los revelados –
Fazê-los ensolarados
Sem sombras ou esconderijos.

Tempestades

Levo no peito as marcas
Que moldaram meu amar.
Mas, por mais que o tenham lapidado
Contornando seu caminho
Num desenho por vezes dolorido,
Repleto de alertas
Dos deslizamentos
Que tão facilmente reabrem machucados...
Por mais que tenham me formado
Esculpindo a pedra porosa de mim,
Fazendo-me esponjosa carne
Que se embebe e avinagra
Quando as ondas vêm
E molham minhas cavernas
Com seu salgado rebentar...
Por mais que às vezes creia empedernido
Meu coração de espera;
Que pense inflexível
Meu agarro a dores velhas
E a traumas já passados;
Por mais que me canse do meu esquivo amor de horas
Que se apaga como o céu
Quando as sombras nebulosas
Lhe vêm, pela manhã, amargurar...
Por mais que todo o meu ser seja moldado desse estupor,
Ainda corre entre seus átrios
Um jorro vermelho de vida
Pulsante, furiosa e abrasiva
Que, de vez em quando,
Derrete meu penedo amargo
E faz, outra vez, fluir em mim
Como um raio
O estado das antigas monções
Que me encharcavam de carmim
E faziam meus olhos brilhar
De uma paixão fulminante
E um sonho de verão;
Um sonho de tempestades acachapantes
E um tremor que faz ruírem
As pilastras do meu forte
E me faz temer a morte –
Temê-la tanto que quase desejo morrer
De sua canção devoradora.
Um tremor que me faz desejar que, de tanto cantar, 
Eu me esqueça de mim
Nas nuvens negras que me lavam o firmamento
E me derreta nos teus braços –
Tu, que não me crês,
Mas que me podes tão bem crer;
Que nem imaginas as tempestades
Que já tens provocado
No meu querer. 

domingo, 25 de setembro de 2022

Vento de Ohio

De repente um sopro do vento me trouxe em seu hálito quente a lembrança perdida de um dia de infância em Ohio. Ele tinha um odor de verão outonal – uma mistura de folhas secas, cujos veios craquelantes vertiam um pólen temperado de amarelo sazonal, com o aroma distante e fugaz de protetor solar e suor que exalava do meu próprio corpo e subia às narinas misturado nas voltas bruxuleantes da lufada de ar. A corrente se embrenhou por sob minha camisa, aquecendo-me uma suave e seduzente carícia ao correr seus dedos da minha lombar ao pescoço, gentilmente guiando-me as sensações rumo a um estado de prazer inocente que me transportou de volta à meninez. E eu me surpreendi com a tamanha facilidade com que os sentidos podem dirigir-nos a mente, em seu torpor inconsciente, às direções aleatórias a que seus desígnios fortuitos julgarem momentaneamente mais propícias.

Tanto assim que, tão subitamente quanto veio, o sentimento feneceu conforme a rajada fresca passou, deixando-me apenas o agridoce sabor de uma memória encarnada mas perdida, um sentimento como o de ter em mãos uma pérola brevemente reencontrada somente para outra vez vê-la escorregar e escapar-me com sua oleosidade úmida e inconstante. E a mente, assim estimulada, sentiu a sede dos entes almados; a sede dos entes que anseiam por um retorno do corpo aos estados de tempo e espaço inalcançáveis do longínquo passado – passado que, como um oásis ambulante, vem e vai no deserto do presente segundo seu próprio e insólito projeto de sentimento, sem que se tenha sobre ele qualquer sombra de controle; que deixa em seu rastro a miragem do desejo, do anseio que busca e busca, sem sucesso, por um retorno.

E, em meu desespero por reagarrar o passado perdido, entendi de relance que também esta reação, este presente estado de sequidão desértica, era resultado das amorfas ondas que guiam o percalço do meu pensamento. Também ela era a decorrência daquele bafejo de vento: era sua condição posterior que me fazia agora como a areia que, quando o mar recuou, restou parcamente molhada e sugou ao seu fundo os resquícios da água salgada, tornando-se ainda mais ressecada do que antes estivera, pois, ao ser exposta à cruel destreza dos elementos em concedê-la uma pequena amostra daquilo que jamais poderia ser seu por mais do que alguns segundos, seria natural que reagisse com tamanha exasperação, tamanho apetite e avidez.

Minha inconsistência e leviandade me causaram, então, uma auto-repulsa. Julguei-me por minha fragilidade, minha pequenez frente às intempéries mundanas, minha total falta de controle sobre meu próprio destino. Considerei-me demasiado alienado, incapaz de compreender mesmo o mais simplório dos fenômenos – essa química da fortuna, a física material do acaso, a biologia científica da sequência dos eventos encadenados que, como os grilhões esverdeados que se erguem cobertos de musgo das profundezas cavernosas do mar conforme o maquinário do meu navio gira suas manivelas e roldanas mecanicamente, fazem subir a âncora do meu Ser para que o trilho da vida possa seguir metodicamente o seu percurso pré-estabelecido.

Contudo, também aí encontrei mais um sinal da minha natureza submissa aos desígnios do mistério. Também no meu cientificismo maquinal, na crítica desconstrutiva e cínica, encontrei os indícios da reação responsiva e superficial: afinal, não seria esse niilismo enfadonho e conformado a decorrência natural do estado de amargura e crueza que toma os seres quando confrontados com problemas para os quais todavia não têm respostas boas o suficiente? Não seria essa atitude uma resposta fácil, uma saída simples para a minha questão de liberdade, pela qual me diria “não há como fugir, somos todos fadados ao jugo do destino que se esquiva das nossas mãos”? Ou “não há porque lutar contra a tendência inescapável do arbítrio inconsciente das Eras”? Também essa resposta, com o tempo, se mostrou inconsequente, incapaz de abordar com um mínimo de inteireza a minha existência, de explicar o espírito que ainda jazia ambíguo e confrontacional no fundo de meu peito.

Pois o tempo me mostrava que, viessem tantas ventanias quanto fossem, restava-me ainda no fundo do palato um gosto místico de vida que se sobrepujava aos breves sabores do instantâneo. Com o passar e acumular dos momentos, ia se sedimentando em mim um caule, uma nervura central, que me sustentava elétrico e, lentamente, me encaminhava de volta ao meu cerne, passadas as inconstâncias. Aos poucos o balanço se-me abrandava e a memória daquele vento externo ficava marcada apenas no discreto dançar da minha ramagem mais avulsa. E mesmo nas inconstâncias parecia ainda haver em mim uma envergadura que se-me dobrava somente até os limites de mim, de um “Eu” que se parecia sustentar ainda constante, mesmo que prolixo de infinitos Eus que me povoavam sinfonicamente. Num dia, Eu era exuberante, cheio de poesia e vida, feito de excessos que, logo em seguida, chamavam um outro Eu mais recluso e desafeto, composto de augúrios lamentosos e estranhos arrependimentos; e a ele se seguia um outro cuja conformidade singela e amorosa fazia secar as lamúrias; e um quarto Eu então se sucedia, querendo o silêncio inconcreto de uma solitude contemplativa; e depois vinha aquele que só queria o concreto, o racional e imediato, cuja sede é da coisa talhada em objeto, até que outro Eu ainda se-lhe demandava uma atenção esparsa ao desconexo, como que propositalmente querendo desligar-me da estática do contentamento. E, no meio de todos, corria profunda como um feixe a estrutura central de uma entidade imaterial, difícil de descrever, feita apenas de tempo sobre tempo, escorrendo numa seiva grossa que desce e sobe sem fazer cederem as paredes da pele, sem que os seus contornos epidérmicos, tão singelos e frágeis, sequer imaginem que poderiam sucumbir. Pois que emana nesse sumo a própria essência da conexão, uma ligação atômica e molecular tão poderosa e decidida que não se-me poderia desmistificar sem antes perderem-se as palavras num desatino desconvexo de elucubrações que só aos poetas, em seu sacerdócio enigmático, poderia ser dado tocar.

E, encontrado esse oculto pedaço de mistério pulsando dentro de mim, pude, enfim, considerar-me liberto das sazonalidades aleatórias do alento. Pude, afinal, entender-me inteirado, completo, senhor de mim mesmo, criador do tempo e das próprias intempéries. Pois que apenas assim, feito parte de dentro do amplo mistério, eu poderia sobrepor-me ao mistério de fora e ser livre dos caprichos do vento que me soprou até Ohio; poderia ser livre mas, simultaneamente, ser parte dele e assim esbaldar-me no meu balanço de veraneio outonal.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Retorno

(Queen - Sombody to Love)

Meus olhos sempre retornam
Àquela distante contemplação do horizonte,
Caindo com o sol poente sobre o mar
E mergulhando na esperança do amanhã.
Meu coração sempre arranha
A superfície de uma sede terçã,
Insaciável,
Inesgotável,
Um ardor que brilha no breu da pupila
Repleto do dom da vida
Que oscila intangente
Na espera intranquila
E ainda assim crente
Na voz da sibila
Que me profetiza
De dias de amor,
De um fogo que me há de abarcar
Com seu calor.
Meus olhos marejam e escorrem
Incertos da orla
E do navegar;
Mas eles sempre retornam
E retomam o sonho,
Tão plenos de um estranho
Estado de antanho,
De quando eu era um menino
E cria em dragões
E voos rasantes
E estranhas canções
Nascidas das entranhas
Das minhas ecoantes cavernas
E suas incessantes pulsões.
Eu sempre retorno à crença
Que me faz criador
De cantos e fados,
Aos meus avultados estados
Forjados na espera
E, mesmo após Eras
À sombra das guerras,
Ainda banhados
Nas ondas do amor.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Conhece-te a ti mesmo e sê como água
E assim poderás tornar-te o arqueiro
Cujas flechas são as palavras que salvam a alma

sábado, 3 de setembro de 2022

Sinto Cheiro de Mar

Sinto um cheiro de mar
Subindo na minha expiração.
Ele nasce no meu distante horizonte,
Onde o sol dissolve em brisa noturna,
E sopra gentilmente por minhas narinas
Em ondas constantes.
Sinto o chão se fazendo areia macia,
Esfarelando como tempo entre minhas mãos,
E mergulho os dedos nos seus lençóis
Que escorrem num ritmo profundo
Do topo das dunas ao coração
Até confundirem-se com os grãos prateados de água
E se perderem na marificação.
Sinto o vento cantando malemolente,
Dedilhando no suor de minha pele
Uma serenata de verão:
Ele canta de noites vadias
Onde a lua corre livre
E os grilos ecoam seus versos
Aquecendo a ligeira canção.
E eu, todo inverso,
Virando paisagem de dentro pra fora,
Me perco, por hora,
Em sentidos que, assim desconvexos,
Me fazem inundação. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Savyasachin

(The Echo Game - Shigeru Umebayashi · Bi Xiaodi · Shuai Wang)

Eis-me o espírito
Rebento das tribos de guerra!
Filho da justiça em fúria – 
Herdeiro das garras do trovão!
Eis-me servo da luta
Com punhos de aço
E espada na mão!
Eis-me como eco na gruta
Retumbando os tambores 
Que exalam do chão!
Eis meu caminho
Traçado por outros espíritos
Tão mais antigos
Que se-me inundam
Da primordial unção!
Eis meu arco à mão esquerda,
As flechas afeitas
Os olhos precisos de convicção!
O campo se estende aos meus pés
E eu já não titubeio:
Eu sou forjado em batalhas,
Guerreiro desfeito do arreio,
Senhor da minha própria expansão!
Sou rocha, vento e centeio:
Sou firme no esteio,
Sou leve e certeiro
E a todo aquele que sob minha guarda
Sofrer a injustiça
Serei o sustento primeiro!

domingo, 14 de agosto de 2022

Dente-de-leão

Ela me é estranhamente familiar –
Quase como uma árvore
Que escalei na infância –,
Com seu jeito ventoso
De escorrer entre meus braços
E balançar minhas folhas,
Fazendo-me um riacho
Que flui suave
Ainda que meus contornos
Sejam duros e marcados
Das pedras que passaram
Arranhando meu tronco
E caíram no cascalho;
Ela me canta um sereno
Que orvalha meus olhos
E dança sobre o mundo
Azulado
Ondulado
E risonho
Embora calado;
Ela me encontra encostado
À sombra de um carvalho
E faz meu traslado
Entre as costas do vivenciado
Soar mais bonito
Na voz de gaivotas
Que esticam minha mirada
Com o som de suas asas
E me levam ao fundo
Do perdido em mim,
Onde encontro uma paz
Feita de nada,
Uma estrada
Que não me enfada;
Nela me junto
E me desintegro
E o peso da alma flutua
Como dente-de-leão
Voando a esmo
Na imensidão.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Dunas Estreladas

Essa noite eu me pergunto por você.
Será que daí, fora do tempo, podes me ver?
Será que à sombra do freixo,
No frescor orvalhado em que amanhece
Teu distante pensamento,
Entre as voltas pela lua
E as danças em plena rua -
Será que a memória nua
Da minha boca em boca tua
Nessa hora mais escura
Faz-se reaparecer?
Por onde andas, meu doce afago?
Por que grutas da vida te hás metido?
E, se encontras aqui comigo
Um caminho compartido,
Não me poupas um momento
- Um breve cruzamento -
De amável intento
- Ainda que a mil léguas,
Feito só de sentimento?
Se quiseres, nos encontramos
Apenas nas dunas estreladas
Dos sonhos partilhados
E por lá fazemos o amor
Que ainda ficou por fazer.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Limiar

Parece haver um limite muito tênue
Entre libertar-se do ódio
E tornar-se uma pessoa odiosa.
É preciso – é inegável – soltar a fúria
E não a deixar intoxicar.
Mas a raiva traz em sua passagem
Um rastro de destruição e violência,
De ideias absolutas
Que desejam totalizar a complexidade da vida
Numa simplicidade obtusa e odiosa.
Eis aí o perigo,
O limiar invisível e errante
Entre livrar-se da opressão
E tornar-se tal qual o opressor.
Há situações – e pessoas – odiosas,
Que oprimem e fazem despertar a necessidade de autoproteção;
E, frente a elas,
É imperativo ter ódio:
Frente a elas, odiar é a resposta apropriada.
Mas o ódio precisa ter direção,
Ter vazão concreta
E a intensidade de uma libertação.
É preciso que a raiva corra
E escorra
E saia,
Mas que não fiquem os resquícios
De uma convicção odiosa;
Que não restem os sedimentos
De uma noção enganosa
Que imagina ser todo o mundo
Feito de instâncias e gentes leprosas.
A raiva deve ser o sentimento
Que arranca o tampão da dor
E deixa restar, fluido e pleno,
O líquido do amor
Que corre nas minhas veias.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Grito aos Trovões

Eu recuso esta prisão;
Recuso com todo o coração!
Esta não é minha canção,
Não é minha maldição,
Não é o preço, a caução
Que pagarei sem retorno
Esperando a inundação.
Minha é a monção,
Meus são os andares superiores
Mergulhados nos trovões,
As altas torres
Que reluzem em meio aos furacões,
Poderosas como alucinações,
Concretas como rebeliões
Banhadas no furor primal
Das libertações!
Meu é o amor
Divino e animal
Repleto de um ardor
Que explode sideral
Impulsionando-me às galáxias
Longe das estáticas
Cavernas do gutural;
Meu é o grito
Desaflito
Quebrantado
Mas alado
Da eterna criação
Da minha expansão,
Respiração,
Pacificação!
Eu sou a própria natureza da amorificação!

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Encantos Antigos

O tempo, ao que parece, tudo embate
Com seu movimento sinuoso.
Mas o confrontamento não se abate
Sobre mim como um oposto impetuoso
– Não.
Suas léguas se percorrem lentamente,
Suas águas escorrendo caudalosas,
Até que em mim fazendo-se o presente
Já se desmancharam as velhas prosas.
 
Chamo, com este encantamento,
A lembrança de amores passados
Com seus velhos cadafalsos,
Qual pontos cegos, a que me lancei
Levando os pés descalços.
Deles já mudou o meu entendimento:
Onde antes via amor,
Entrega e contento,
Hoje vejo uma sombra
Na qual se ocultava a dor
De lamúrias ancestrais.
Nada do belo ficou;
Restaram planícies desertas
Só por mudas de trauma recobertas
E um velho sabor agridoce
De comiseração.
O amor que outrora sonhei
Mostrou-se pesadelo
Arquitetado nas colunas obscuras
Do meu primitivo pensamento,
Atuado no palco das tuas loucuras
E do teu pertencer sem pertencimento.
O tempo me desnudou dos engodos velhos
E deixou o pus latente do machucado.
Mas, por isso, a ele sou grato.
É chegada a hora de reescrever minha história,
Fazê-la memória viva,
Cicatrizá-la em outro significado.
 
E assim usarei os encantos antigos
Para me compor por novas estradas
Que cantem dos velhos perigos
E das entradas erradas
Fazendo-me novos abrigos
Em vias mais bem desenhadas.

domingo, 15 de maio de 2022

O Tecido da Vida

O tecido da vida,
Se o tivesse que descrever,
Diria que parece que se faz
De um fio central de dores velhas.
Esse fio – ramoso de fibras avulsas
Que saltam como espinhos,
Espesso de tufos macios
Que se deformam ao toque –
Esse fio se precisa, antes de tudo, apaziguar.
É preciso amansar seus espinhos,
Transformá-los em vincos
De onde os nodos de novo tecido
Se poderão dependurar;
Há que se aparar seus ponteiros daninhos,
Fazê-los como hastes robustas
Por onde a força dos erros se alinha
Em esplendoroso penhoar.
É preciso abraçar os pedaços macios,
Acalmar seu tremor e os seus burburinhos
Fazendo da sua ternura um amor
Que se possa sustentar;
Há que os conhecer como velhos caminhos,
Saber seus cadafalsos e espaços sombrios
Pra fazer renascer de seus fios encolhidos
A malha que encherá o tear.
E, quando enfim feita a obra
De lento desemaranhar,
Há que se lembrar em cada retorno
Das voltas que o tecido dá;
É preciso um constante rememorar,
Um eterno conhecer-se
– Um reconhecer-se no costurar.
É preciso, ao olhar os emaranhados de fio
Descendo do cerne ajeitado,
Sabê-los fundados
Em dores e espinhos
E assim trançá-los numa alegria
Que talvez aparente melancolia,
Mas se saiba completa
Com suas fibras da cor do vinho
Aquecendo gentilmente
Os contornos do coração.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Albatroz

Eu me lembro
De uma coragem ancestral
Que me banhou.
Suas águas correram por sobre minha pele
Limpando minhas chagas
E levando consigo a infecção.
A ferida, então, secou
E fechou
Curada de pura forma
No amor que me selou.
E eu me vi blindado
De uma plena nudez:
Me vi aberto e tomado
Por um estado
De torpor e lucidez.
E soube que a dor é duas:
Uma é dura, perpétua e escura
E agarra o peito em silêncio
Querendo fazer-me amargura
E fechar por inteiro meu Ser;
A outra é pura,
Um raio de plena loucura
Que passa com a fúria dos Sete Mares
Varrendo meu conceber.
Ela me leva às alturas,
Empurra minh'alma
Até as lonjuras
Do meu dolorido ascender.
E lá, nas nuvens inebriantes
Do desconhecido veloz,
Ela me faz albatroz
E eu mergulho do mais alto em mim,
Alcançando meu mais profundo
Num instante,
Num puro rompante
Que me faz novo respirar.

domingo, 10 de abril de 2022

A Sombra


(Hozier - Take me to church)


Meus silêncios não te bastam,
Eu bem sei.
Mas são os teus que me calam
E eu já não me acho
Em condições
De caçar palavras
Pra dizer-te segredos
Proibidos e, quiçá, indesejados.
Meus caminhos não te acham,
As trilhas talvez tenham se apagado
Ou estejam por demais distorcidas
E eu não consigo sair.
Seria tão fácil pedir
Que viesses aqui me encontrar,
Pedir que te perdesses
No meu labirinto de imagens,
Mas sei da injustiça que falo.
Seria cômodo fazê-lo desachado
Como me fazes;
Descasado do próprio estrato,
Lançado ao mar desalado.
Então não te peço.
Não faço.
Não dou um passo.
Mas meu coração petrificado
Pede por vida
E assim, ainda que em silêncio,
Escondido,
Doído e perdido,
Aqui eu te falo.
Aqui eu me encontro o suficiente
Pra te fazer um afago.
Aqui dou vazão
Ao sentido
Que em tua presença escondi
Por medo do significado.

Toujours

Inda me queda esperança;
Pois eu, em desesperança,
Me desespero por mim
E nos meus velhos desconhecidos
Me reconheço;
Me arrefeço o novo
E aqueço os velhos andores
Que reagem
E queimam
Cheios de fuligem que sobe
Como poeira e incenso aos céus.
Y así sé que todavía seguimos nosotros aquí,
Noi che siamo i miei vecchi abiti,
Sicut radices quae adhuc inter spinas florebit.

Meus sonhos sobem à flor da pele
E vazam seus medos, anseios, desejos,
Seus irrestritos desfreios
Que de tão meus
Parecem alheios,
Achados somente em multidão
Nos demônios que me encontro
Feito legião
Com asas de anjos que me elevam ao mais alto
E agridoce céu,
Feito inteiro de fel.
Y aunque no pueda sanarme,
La vita mi ballerà verso di me,
Et hoc satis est ad me.

Inda soy qui,
Inda per mí,
Inda mentre tutto que yo sofrí
Sonreí
,
Y así mismo ho fato il destino
Come camino diverso,
Mea verita semita,
Senza seguire il significato eccessivo delle parole stesse.
Las palabras son mías,
Non io di loro
,
Mas, para dizê-lo, me rendo
Ao palavrório que ainda habita
No recôndito de mim.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Olhos Fechados

Eu não durmo bem de olhos fechados
Pois meus amores são vagos
E ficar na distante lembrança dos sonhos
Não lhes cai bem.
Não me aprazam os lábios selados
Cheios de mistérios, envoltos em estragos
E os mesmos círculos enfadonhos
Em que eu rodava ontem.
Prefiro viver,
Mas a poesia não me encontra calmo;
Me encontra sem rima,
Sem ritmo,
A um palmo
Dos meus velhos salmos
Repletos de abalo,
Contraltos
E uma profundeza sem fim.
A poesia me traz
Um odor de jasmim
Como um velho bálsamo
De luto
E eu luto pra não morrer,
Mas a morte floreia
E escapa da boca
Num sopro de pólen
E eu fico todo vivo
Do meu contrassenso
Virando jardim.
Sorrio tristonho vendo a grama em apreço
- Quase convalesço -
E então volto em silêncio
Até mim.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

A Névoa

 Foi então que eu entendi que uma grossa névoa me encobria.
    Quando olhava o mundo, parecia enxergá-lo sempre tão nítido; as curvas do engano, coitadas: olhava-as de longe e, desde o princípio, já conhecia suas mentiras esguias. Especialmente em se tratando do corpo e de sua linguagem: para lê-lo, me assemelhava a um profeta. Predizia com perfeição as intenções que se esboçavam nas aparentes contradições que os mais discretos movimentos produziam. Parecia ser capaz de farejar tensões sexuais no ar com a fina navalha do olfato; era capaz de envolver por inteiro na mão as tristezas alheias com um simples toque; escutava as profundezas de uma confusão interna qualquer mesmo que de relance; conseguia mirar uma dor direto em seu âmago apenas com um olhar lançado certeiro dentro dos olhos de outrem. O mundo – os outros – se-me revelavam com uma facilidade imensa. Bastavam uns poucos instantes e lá estavam eles, expostos.
    Ter essas habilidades era maravilhoso para alguém como eu: significava que, rapidamente, eu era capaz de juntar umas feições aleatórias de personalidade e embalsamá-las num traço com a minha caneta sobre o papel. Com altivez, observava dos picos do meu silêncio – e, às vezes, até mesmo a partir da vista comum de um participante intento – as clareiras que se manifestavam entre as palavras das gentes de carne e osso. Depois, bastava anotá-las num canto de rodapé da mente e deixá-las ali decantando, aprofundando suas raízes, até que elas se tecessem mais harmoniosas e belas, com elegância suficiente para enfim pousarem uma personagem na folha.
    O curioso foi que demorei para descobrir que conseguia fazer isso. A princípio, exerci a tarefa sem sucesso algum: as conexões eram simplistas demais; os mortos-vivos que traçava em meu caderno mal paravam em pé, tamanha a fraqueza das ataduras que lhes impunha no processo de mumificação. Mas, com um pouco de experiência, fui adquirindo o poder de moldar suas musculaturas de maneira consistente debaixo das faixas descritivas com que os compunha. Aos poucos, seus pensamentos foram ganhando forma, e logo já lembravam seres inteiramente viventes, quase independentes de seu criador.
    Fazê-los falar foi outro grande desafio. Suas palavras soavam mecânicas: por vezes pareciam épicas, frequentemente revelando coisa demais em muito pouco tempo – mal conseguiam durar uma troca de olhares no quadro sem derramar por inteiro seus seres em frases excessivamente desejosas, cheias de uma convicção amorosa inconvincente. Era culpa minha: aprendera com a poesia a esbanjar de uma só vez todo o sentimento do coração, e até em amplas partes da minha vida me intoxiquei dessa estética imposição, expondo minhas entranhas em conversas de identificação e reconhecimento com surpreendente facilidade. O problema é que nem todos são como eu. Costumam, na verdade, fazer o contrário, esquecendo suas cóleras mais agudas para as horas rotundas da noite, momento no qual a mente profunda enfim coruja escusa os seus sofrimentos; durante o dia, ficam apenas a animar repertórios mímicos irrelevantes, preferindo guardar seus anseios entre as colunas escuras do não-dito. É só nos detalhes de suas declamações – nas entrelinhas, nas repetições, nos erros e em outras ligeiras entregas de emoções – que os versos do cotidiano da maioria dos seres revelam as suas reais intenções. Ao repassar, portanto, suas palavras ao papel sem essa devida filtragem, fazia-os soarem falsos, como que incautos e românticos, quase desejosos de verem seus contos se encerrarem ainda na primeira linha.
    Precisei, então, trabalhar a estética do segredo. Isso não me foi agradável. Em segredo guardava somente as partes minhas que não desejava encontrar, e cruzá-las com as verdades outras que me via ávido por revelar fez com que subitamente me encontrasse a mim mesmo ali, nu e exposto. Afinal, as verdades alheias rapidamente começaram a se entrecruzar com as minhas e a arrancar-lhes, no processo, uns trapos. Passavam, ademais, com uma sensualidade urgente, que seduzia meus próprios segredos para fora, forçando-os a se revelarem quase em sua inteireza perante a forte luz do meu suposto alheamento. Expor a outrem, percebi quase de imediato, significava necessariamente expor a mim mesmo, o que, por sua vez, implicava em constatar que escrever uma narrativa é um ato profundamente sexual (a esse ponto vale acrescentar uma irônica reflexão: se for verdade o que aqui é dito, não será surpreendente concluir que há livros bons e livros ruins da mesma maneira que há transas ruins e transas boas. O segredo parece estar, se ainda não estiver suficientemente claro, na entrega).
    No entanto, olhar para mim parecia ser muito mais doloroso. Ver os esforços alheios, suas palavras e movimentos, era tão fácil! Já olhar para dentro e ver essa gosma de penumbra arrastando-se sobre si mesma, multiplicando sua densidade, gerando miragens com suas ramagens nebulosas de espuma, fazendo-me crer que, numa hora, eu era uma coisa e, logo depois, outra, apagando as palavras do meu pensamento quase no mesmo instante em que elas se haviam formulado, misturando sentimentos novos com antigos, sensações com memórias, realidade com mito, silêncio e solidão com excesso de interna conversação… Isso simplesmente era complicado demais. Enxergar-me assim era muito diferente daquele meu reflexivo olhar poético: enquanto na poesia ele se-me lançava numa pequenez circunspecta, num relance de compreensão que cabia muito bem nas camadas relativamente profundas do momentâneo, o reflexo do longo intento parecia demandar um esforço de autocompreensão muito maior, quase sobrenatural.
    Foi então que entendi que uma grossa névoa me encobria: a névoa que se formava nos meus próprios olhos quando eles se encontravam virados para dentro. Ao inverterem-se sobre mim, eles ficavam inteiramente inundados de moscas volantes: se ao olhar para fora eu as via esparsas como navegantes perdidos em meio à (aparentemente) perfeita visão, quando meu olhar se virava para o interior, de repente a pupila parecia toda celulada, feita de infinitos minúsculos seres a se-me comporem a própria luz, colidindo em choques elétricos que me geravam ilusões de coloração. Olhar-me foi subitamente me decompor, sem saber em que canto do cérebro eu poderia novamente juntar-me – sem saber em que canto de corpo eu conseguiria amontoar os desconexos pedaços de mirar que se-me lançavam e montar, com eles, uma imagem coesa. Descobrir-me a névoa foi o desengano da própria visão. 
    Entendi, assim, que, para me ver, meu ser teria que ser todo draga: de todo aquele meu entulho confuso e sombrio, teria que me fazer um navio e, uma vez feito, zarpar nele por entre as espessas areias do rio até o encontro de um quadro que eu me pudesse pintar, mesmo que por um ínfimo, ridículo e inexistente instante. Eu precisava, também a mim, me mumificar. Um poema não bastaria: nele não encontraria a paz da profunda dragagem; não lançaria minha voz contra o poço escuro, nem muito menos à sua beira esperaria durante longos momentos o retorno do eco que me diria um pedaço de verdade. A verdade do instante de mim só se poderia encontrar, agora, numa mais espessa longanimidade: num tempo que, embora ainda curto, se estende por mais do que um alarde; num tempo que, apesar de ligeiro, parece que chega tarde.
    Olhando-me dessa maneira, com esse profundo desconhecimento em meio a um cipoal de descontentamento – de desconforto e auto-inimizade –, percebi-me incompleto. Percebi, e isso é mais e pior, um olhar incompleto. Entendi-me incapaz de encontrar nos olhares alheios lançados sobre mim quaisquer sinais de verdade. Descobri-me trancado na nuvem da inobservância, como se eu fosse um farol condenado a projetar durante o eterno sua luz sobre a escuridão do mar sem nunca quedar-se, por dentro, iluminado; como se fosse um farol, mas a tempestade corroesse não os rochedos, pois ela estava, em segredo, corroendo o meu teto, a minha lanterna, os meus degraus, os meus silêncios e, acima de tudo, os meus sinais. Era uma tormenta não de ondas, nem sequer saída das fossas abissais: ela existia em degredo, imponente brotando da minha carne – nascendo da própria terra como monolito negro feito inconcreto através da ascensão do penedo.
    E, ao encontrar-me assim empedernido – enegrecido de granizo a turvar-me violento –, vi-me prostrado de dor, curvado ao relento. As gaivotas grasnavam alucinadas ao meu redor, o mato ralo balançava ao vento na beira da areia que, dura, esquecia seu intento, deixando gelar-se nas ondas do mar. Do alto do meu farol, vi a maresia que exalava de dentro oxidando o metal da minha edificação. Vi o furor da minha luz, repleta de escuridão, girando por sobre o mundo externo num turbilhão, buscando arrogante, defensiva e ardorosa postar-se segura em prosa numa longínqua nau desconhecida. E, horrorizado, vi-me enfim caracol em degraus descendo, saindo do meu orgulhoso sustento, deixando para trás a redoma de vidro que me quis criar. Pois aquela torre era um tormento, e sabia (graças aos anos de poesia) que a saída só poderia encontrar-se no fundo, depois da fuligem, do musgo, do adubo, num lugar onde a pedra se faz liquefeita.
    Desci e vi, então, meus lençóis freáticos se agitando no subterrâneo de mim, conforme o meu falso conhecimento ia se enveredando por dentro das suas covas primais. As águas de terra úmida me soterravam, prendiam minha respiração – mas eu já as sabia apenas portais, um pedaço do caminho onde as dores purificam em rituais de dessagração. E fui nadando, navegando minha nau de draga, afundando nos confins do horror, sabendo que somente através dele me encontraria com a parca verdade que me chamava.
    Avançando no extenso mergulho, cheguei enfim a uma caverna onde as estalactites do meu coração pingavam um longo e silencioso unguento. Meu peito tremia – brandia minha caixa torácica, fazendo soar como tambor até a minha pele debaixo das gotas que desciam uma a uma sobre meu ser. Era a água que escorria das minhas veias com a lentidão do tempo mais profundo, caindo sobre minha testa num ritmo de anunciação: primeiro zunia um zumbido grave, depois retumbava no distante oculto, e por fim voltava, quase imperceptível, vibrando nas mínimas ondas da fina bruma que cobria o chão. E pingava… pingava… pingava… pingava repleta de tempo. Corria cheia de esquecimento, dizendo que me sumia, que me fazia uma tênue linha por sobre o intento, e me prometia ser guia, criar-me outra via que escorreria por entre os caminhos da terra, traçando os veios da folha por mim. E eu ficaria repleto, silente e perplexo, no subterrâneo da minha emoção.
    E houve, por um instante, um som de liberdade, audível como o mar.

domingo, 2 de janeiro de 2022

Encantamento

Houve por um tempo silêncio no vento.
E, como num feitiço,
A matéria do seu oscilamento
Fez tremerem as cordas dentro de mim.
Carregava em seu movimento espesso e leve
O vibrato dos pássaros,
O murmúrio das folhas
E o chiar de um velho portão
Que enferrujou no meu pensamento.
Havia no seu intento
Palavras descomunais
Que não cabiam na minha linguagem
Nem nos meus olhos:
Apenas cresciam nos meus pulmões
Com a sua passagem
E depois subiam vibrando
Boca afora
Como um estranho encanto
Que vazava de mim.
Houve um breve momento de amor
Sexual como o esquecimento
– Mas ele logo passou
E em seu lugar fez-se outro amar,
Repleto e contento,
Um tipo de comedimento
Que se expandia além-mar;
E desde então eu às vezes me esqueço
E me encontro lá fora,
Como se fossem as horas do corpo
Um curto segmento
Da vida que em mim atracou.