domingo, 27 de dezembro de 2020

A Resignação

Tentei fazer a mente superar
As barreiras todas no caminho
E alcançar, enfim,
Um seu lugar
No corpo inteiro
Em-si sozinho,
Mente-corpo encontrado
No desencontro em que a matéria
Se faz espírito
E some em paz no universo.
Mas
Não sei se
Não existe esse lugar
- Se viver é aceitar a limitação
Como um seu pequeno encontrar
Na imensidão inencontrável -,
Ou se, existindo, em buscar falhei
- E se falhei porque acelerei
Uma busca de muito mais tempo
Ou se simplesmente porque tentei.
A estrada hoje está tripartida perante meus pés,
Os ladrilhos trincados e empoeirados
Da via romana antiga
Por onde outros parecem ter passado.
Não sei se enganados eles me enganam
Ou se me engano de caminho
E em verdade estou noutro cruzamento
Muito mais distante, nalgum outro lugar.
A estrada está tripartida
E eu quero sentar
E chorar...
Mas a vida obriga a avançar
- Mesmo parado estou avançando -
Então devo caminhar.
Fecho os olhos e vou
Sem saber qual tripartição escolhi
- Sem sequer saber se escolhi -
E que a vida decida por onde trilhar.
Eu me resigno a não saber
E só deixar o tempo me trespassar.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Retorno ao tempo

Cada vez mais eu me retorno
Reduzido.
Me percebo tão pequeno,
Tão menor do que pequeno,
Tão frágil e torpe
Dobrando sob as monções
À beira do estalo,
Secretando ceras e sons
Sem ter controle
Sobre o corpo
E a história que sou.
Eu retorno ao tempo,
Senhorado e humildado
Sob a égide do seu poder.
Eu retorno ao mundo
E nele me apago:
Eis então meu aceder.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Narra e Te Vá

O que são palavras roubadas?
Parece que me enganei de princípio
Fingindo que me principiei
Que príncipe hei de me coroar
Quando chegar um tal fim
De uma tal jornada.
Mas hoje mesmo te amei
E não encontrei em mim qualquer rastro
Do amor que por ti cultivei.
Hoje mesmo estive em outro lugar,
Fui dois, três, dezesseis
Em histórias que me contei
De amor, de conquista,
De miséria e preguiça.
Hoje mesmo me narrei
Sem pé nem cabeça,
Sem dúvida, sem que em mim cresça
O perigo do fim,
Pois me narrei sem narrar:
Estive distante do que me chamo de mim,
Longe de roubar palavras alheias,
Pois alheio está Eu
- Ele que sumiu em massa,
Na pasta de onde nascEu.
O que, então, são palavras roubadas?
São palavras que têm sentido
Propósito
E fim
E Eu já não me encontro caminhando:
Virou a ampulheta e fez subir o tempo.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Todos os caminhos levam a Roma

Todos os caminhos
Parecem levar a Roma.
Mas eu sonho em chegar ao deserto
Onde não há muralhas
- Exceto as das dunas,
Que sobem e descem no tempo
Recriando o espaço a cada dia -,
Nem vozes em demasia
- Exceto as do vento,
Que sopram um cântico milenar
Em ode ao silêncio -,
Nem luzes que cegam
- Apenas as das estrelas
Que, ao contrário, guiam.
Para chegar ao deserto
É preciso seguir um anticaminho
Deixando que a vida flua
Para longe do centro
Até escoar nas beiradas do mundo
E de lá subir aos céus
Abstrata e desfeita,
E assim retornar a Roma:
Rarefeita em orvalho e chuva
A tempo para a colheita.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

O Caminho dos Céus

Cada vez que levanto
Meu espírito aos céus
Levito
Me encanto
Desprendo da terra
E me julgo encontrado.
Mas o que é o encontro?
É o fim do caminho,
O cessar do vento debaixo das asas,
O encarnar do desencarnado
Que da jornada retorna
Aterrado.
O Levante, pois,
É apenas um Estado
Como outros tantos
Que sobre essa terra
Têm governado.
Falta ao espírito
Livrar-se de si:
Do encantamento ao qual sucumbe
Quando se crê celestial.
Pois também o espírito
Nasce, floresce e fenece
Como tudo mais que é cultivado.
Também ele se desfaz
Para que novo possa se fazer,
E só na mudança
Encontra sua perenidade.
Eis, então, o que digo:
O Caminho dos Céus
Corre nas entranhas da Terra.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Guia

Eu sigo as luzes que me guiam
Pelos caminhos que elas me fiam
No puro ar da noite estrelada.
Suas linhas são tão finas
Que contra o fundo do escuro infinito
Sequer aparecem -
Quão translúcido é o seu tear!
Mas com os olhos dos pés eu as sinto
E caminho sobre o invisível do espaço.
Eu sou o andarilho noturno
Romando por entre o breu
Que preenche a imensidão dos céus.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Meu Tempo

Meu tempo
Meu tempo
Meu tempo...
Devo sempre me lembrar
Que meu é o tempo.
Minha é a obra de vida
A linha torta e garranchada
Que se fia em poesia
Escorrida da borda da mesa
Meu vaso de água doce e inodora
Que verte num instante
E jaz perene no assoalho
Na madeira
Na seiva que sobe
E floresce
E deságua em néctar
E suor das folhas.
Meu tempo
Meu tempo
Meu tempo...
Meu é o segredo
Meu é o trago de sossego
Meu é o toque
Que sente as folhas secas
As pedras do caminho
E a brisa fresca
Que escalam debaixo da pele
No corpo que sente o mundo
E o mundo que o sente.
Meu tempo
Meu tempo
Meu tempo...
Meus são os olhos que deito
Sobre a terra em que me recinto
Meu é o vagar de pupilas lentas
Que escolhem parar
Sobre as coisas mais vagas
E insignificantes
E significadas
Que a minha mirada foi desencontrar.
Meu tempo de ser
Meu tempo de amar
Meu tempo de desenganar
Meu tempo de me desarmar
Das armas de tempo
Que me quiseram forjar
Contando histórias
De um tempo que eu não quis passar;
Agora é meu tempo
E nele eu me descompasso
Em tempos outros
Menos escassos.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A Fenda da Porta

São muitas as vezes que o silêncio passa
Discreto nas fendas da vida corrida
E as permeia de milagroso estar
Como um óleo que desarranha o verter da porta
E permite ao vento assoprar
Sem assombrá-la,
Sem perturbá-la além dos seus devaneios mudos,
Acedendo a se conformar apenas
Com um último estalo agudo,
Um estrondo de suspiro finado.
São tantas as vezes que o silêncio passa
E ainda assim rangemos
Como se o som se lhe complementasse
Um algo a mais de existência,
Mas não -

Não.

O silêncio não se arreia.
Ele se despe dos ornamentos viçosos,
Assopra a candeia
E faz das trevas a sua morada -
A morada da grossa noite do espanto
Onde reluzem os brilhos negros
E os sons obtusos
Na estranha contradição
Dos medos que se aceitam
E dormitam cercados de sonhos.

sábado, 10 de outubro de 2020

Meu Pecado

(Pecadora - Los Hermanos Rosario)

Acordei na madrugada
Depois de ter sonhado
Que dormia acordado
Enclausurado
Nos demônios da excessiva sobriedade;
Que dormia angelicado
O sono dos que foram muito justos,
Tão justos que apertados
Morreram sufocados
Empapados até os pulmões dos seus babados.
Sonhei que era cristão
E que era devorado
De pecado e extrema-unção,
Assim bem embaralhado -
Um remédio encorpado
De veneno e agradável negação.
Sonhei que o vinho tinha acabado
E que eu tinha me quebrado
Em nome da restauração;
Sonhei que tinha errado
- Não, isto não foi sonhado -
Mas sonhei que o erro
Tinha se me devorado
E regurgitado em lição
E, Deus me livre,
Eu pregado desse sonho bem prensado
Tinha me consagrado
Ao professorado
Da humana salvação.
Acordei, pois, madrugado
E lembrei do meu passado
E dancei descompassado
Num gingado que é tão são,
Tão desperto, encontrado,
Só por ser tão tresloucado
Sem remédio e sem perdão.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

O Rumo

Quando andei pela floresta do pensamento,
Tocava os troncos ásperos com mãos de seda;
Passo meus pés nus na espessa argamassa de chão
Esculpida de gramas, lamas, folhas secas
E eventuais pedregulhos -
Pois que andar é calejar.
Andarilharia no escuro das copas
À luz dos raios cantados em passaredo
E do silêncio que dilui na neblina da fronteira.
Quando caminho nos bosques de mim
Eu me desencontrarei,
Mas isso vai bem.
Não há outro lugar que procure
Se não essas antigas farpas,
Esse ar úmido e essa passagem de musgo me encaminhando.

domingo, 4 de outubro de 2020

Vozificado

Busco uma forma de dizer o indizível.
Quero botar no papel a matéria do silêncio
Que tenho em mim incorporado.
Mas as folhas se riem das minhas palavras;
Balançam ao vento, soprando à minha fronte todas as letras que em vida tracei.
As letras me traem...
Eu me traio.
As minhas naturezas ambíguas exigem um equilíbrio impossível
Entre o traço e o não-tracejado.
Elas comandam que eu resida em mim
Com meus significados
E os vaze sobre o mundo
Sem dizê-lo - sem sequer tocá-lo.
O silêncio demanda-me um sacrifício
Que não estou preparado a fazer quando em vida.
Eu preciso vazar em rompantes falados,
Eu preciso fazer-me um corpóreo vociferado!
Mas as minhas palavras corroem a matéria de tudo -
É preciso... É preciso silenciá-las.
É preciso superar a persona poeta
E buscar outros caminhos.
É preciso entender o anseio que vaza
E, se necessário,
Ressignificá-lo em abandono.
As palavras cada vez menos dizem qualquer coisa -
São todas mentiras esperando por se contar.
Ou, ao menos, são todas passado
E um novo presente preciso moldar.

E agora?

Disse o indizível
E vejo-o desfazer em farelos
Nas letras vazias que pairam como dunas
No deserto do que foi dito.
Outra vez mais meu anseio engole a verdade em palavras
Até a asfixia da bruta realidade
Soldando-a em falsidades prontas
Que no sopro do tempo se enferrujam.
Outra vez mais estou vozificado em palavras sujas
Coberto da grossa crosta de meias-verdades
Que não mais me são.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Intempério

Hoje o tempo me tomou
Com seu fluxo completo
E eu nada pude
E quedei a perplexo aceder
Que ele me devorava
E meus enganos de controle
Esvaziava
Enquanto vazava ao redor
A textura que me escapava
E eu só olhava
Olhava
E olhava
E passava ele n'eu
Eu nele nada
Nadava o tempo
Na minha carne de água
E eu sorria
Pois que do falso tempo
Ele me libertava
E agora eu sabia
E mais nada.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

As Águas Profundas do Silêncio da Alma

Você devia parar
Com essa mania de esgueirar suas mãos
Debaixo do meu travesseiro
Mergulhando os dedos no meu cabelo
Por sob minha pele
E através do cerebelo
Pra tocar meu núcleo almoso
E, com seu roçado dengoso e discreto,
Se infiltrar nos meus sonhos.
Devia parar
De alcançar-me daí
Da sua margem do lago
Com seus braços sinuosos,
Seus rios de abraço
Me engolfando em remanso
E assoprando as conchinhas
No leito do ouvido
Pra me marejar ondulado
E me navegar balançado
À luz dos espíritos noturnos.
Devia parar de me encontrar
Quando estou desarmado
Das minhas razões
E noções de cuidado,
Quando teus dedos fazem mais estrago
Arranhando o tecido do meu lado sensível
E logo curando o machucado
Com o toque macio do teu úmido lábio.
Eis aqui, outra vez, o meu lado inerte
Guiando o translado
Encontrando em você
Algum significado
Perdido nas covas profundas
Dos meus naufrágios.

sábado, 26 de setembro de 2020

O Zumbido

Sinto saudade de quem nunca fui.
Noto um desafino tinindo agudo
Na antecâmara esquerda do peito,
Vibrando na catedral de mim por inteiro
Um lamento de idades passadas
Ou terras distantes
Ou casas vizinhas,
De campos por arar estendidos longânimes debaixo do sol,
De vigílias por guardar em muralhas fronteiriças no luar,
De enganos por me contar na correria paulistana,
De monastérios onde me consagrar a votos de silêncio
E ruas onde me lançar de novo a andanças desencontradas.
Sou como a cigarra
Zumbindo encantada na madrugada
Lembranças que ficaram por cantar
Sem consciência do que canta
Porque a vida é serenata
Em todo canto dessa Terra
Sem se ter por que cantar;
Sem a quem, sem nada mais por encontrar.
A vida contemporânea é o desengano do encontro:
Quando enfim localizada
Quer perder-se num canto diferente,
Pois que aqui
- Como em outro qualquer canto -
É mui difícil de cantar.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Toda ilha é um homem

 "Nenhum homem é uma ilha", eles dizem. Mas
Toda ilha é um homem.
Coberta de espessa penugem
Ela respira pesadamente
Afastando o mar no seu trago arfante
E mergulhando nele ao expirar.
Ela recita pra si as lembranças do dia:
Duas xícaras que fumegaram nuvens no céu
Zarpando entre aqui e acolá
E um corcel que relinchou indomável
Debaixo do oceano, mas
Fora isso
Nada de muito importante.
Toda ilha é cantante
Debaixo do silêncio grosso
Que corre no vento da selva
Carregando um estranho alvoroço
De espíritos selvagens e cigarras incessantes
A incendiar um hino exultante
De mata ciliar sitiada.
Toda ilha é uma fome danada;
Um anseio da coisa talhada
Da farpa arrancada
Da veia rasgada
Da mata torrada de um sol que não se põe por nada -
Por que esse sol não se cala?!
Por que não me para
Em noite amenizada
Num jorro de brisa que esfria no calor do ventre
Guturalizada?
Toda ilha navega, mas
Sua navegação indigente
Parece ao olhar inocente
Ilhada.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

As Marés

O que mais estranho
Em mim
É a dicotomia trêmula
De vazio e cheia das estações.
Quando a lua enche
E puxa meu tudo rente à pele
Enérgico e transbordante
Encharcado de palavras onduladas
A espumar por sobre a terra,
Tudo que desejo é o silêncio
Onde quede o meu verdadeiro estado.
E quando, então, a lua míngua
E desaparece
Deixando-me pequeno,
Contrito e vago,
Esgueirando restrito
Na imensidão de mim
Sem ousar verter um único som
Nas encostas desertas...
Eis que sobe nas entranhas
O anseio gutural do grito,
Demandando que eu me seja
Em toda minha natureza envozeirada
A fluir por sobre as margens do rito.
Eu sou a voz que se cala
E o silêncio que replica -

Inspira

E expira.

sábado, 1 de agosto de 2020

A Fenda

O mundo inteiro escorre
Numa lágrima de sangue
Desde a mata ciliar dos meus cabelos
E embaça o terceiro olho
Em minha testa
Dividindo-me em narinas
Bocas
Seios
Um átrio esquerdo
E um vazio direito
Perfeitamente desequilibrado
Em corpo.

Respiro.

O mundo escorre sobre o ventre
E cinde o sexo
E cinde ao meio
Descendo as coxas
Os joelhos
Até a planta dos meus pés.

O mundo inteiro veio
Até meus pés
Me levantar
Sondar
Beber
E conceder meu ar;
O mundo veio levitar
Ao meu alcance
Pra quem sabe desfazer exangue
O meu fender.

Eis a minha oferta,
O meu dizer,
O meu fazer.
Que seja sacrifício digno
Do aceder.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Os Sonhos dos Reis

Os meus sonhos ultimamente
Têm sido povoados por ruínas.
Vejo neles uma fria luz
Milimetricamente calculada
Para fender a existência em duas
E deixar-me do lado de cá,
Longe do infinito,
Enclausurado nas mortalhas de um tempo de tantas promessas...
Tantas promessas vãs!
Vejo Ozymandias,
Epaminondas e César
Alinhados sem glória rente ao chão,
Seus corpos cobertos por túnicas jeans,
Levando consigo ao reino da morte um celular na mão.
Vejo as estátuas de bronze
Derretendo em fusão cor de ouro,
Vejo as cinzas brancas como a própria luz
Evaporando a minha visão.
O fim do sonho se aproxima
Mas sinto que não despertarei -
Pressinto que ficarei para sempre na linha fina de claridão
Desenhada para meus olhos
E minha silenciosa respiração,
Entre vida e pesadelo,
Entrelinhas e calafrios
De despertar do escuro
E encontrar na luz só mais breu.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Dormência

Sinto inerte uma parte de mim
Como se o sangue já não corresse sob a pele -
Mas não esta epiderme que sinto contra o caderno. Não:
É a derme da alma que jaz dormente
De um sono mordido e sugado
Sem beijo de redenção.
É o sono profundo do espírito
Que hiberna para se preservar
Da seca do mundo, da seca das almas,
Da seca da própria vida
Que se me parece retroceder
À mecânica do sobreviver.
Sinto morrer a utopia
O desejo
O próprio fogo quente da alquimia
Em nome dos olhos secos
Que possam resistir ao olhar da Medusa -
Se bem que talvez este seja o sentimento de petrificar.
A verdade é que a morte há muito venceu,
Instaurando seu breu sobre a vida
E cobrindo de cova a alegria.
A verdade é que o horror já nos acometeu de paralisia
E o espírito humano se perdeu.

Mas...

Talvez ainda agora, invocado por nome,
Ele tenha tremido debaixo da terra inerte de mim.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Os muros de Jericó

Pensava esta noite sobre onde estamos
E talvez 2020 não seja a marcação ideal.
Por um momento cogitei que nem saímos de 2013
Quando de vez nos rachamos,
Mas nem isso parece real.
Lembrei que foi em 2008 a crise que desenhou
Nosso estado de sítio econômico
Que até aqui perdurou,
Mas também ele nasceu das entranhas de um 2001
Onde o terror impeliu que cedêssemos grandes poderes
Ao Estado que nos traicionou
Em favor de interesses especulativos.
Porém, nem isso me bastou.
Pois a semente de 2001 foi plantada em 89 e 91,
Quando a morte do comunismo deixou aberto o caminho
Para novos inimigos espreitarem o imaginário popular.
E se isso foi verdade, só o foi porque em 39
O nazismo tomou seus primeiros passos rumo ao distúrbio do mundo
Que eventualmente incorreu no seu próprio esfacelar.
Mas 39 foi filho da crise de 29,
Que por sua vez nasceu da Grande Guerra,
Que ela própria veio das revoluções disformes do século XIX,
Quando os Estado-nação - e o Brasil - se gestaram
Em conflitos de classe, de terra e de servidão.
E se tais processos surgiram, foi apenas porque em 1789
Eclodiu a primeira Revolução -
Se bem que cem anos antes também viera a Gloriosa
Embasada nos Cercamentos que gestaram o Capital
E nele todo o processo que nos distribuiu de forma tão desigual.
Mas eis que até mesmo os Cercamentos
Foram filhos de glórias outras - quando Elisabete venceu a Armada Espanhola
Tomando à Inglaterra os louros da hegemonia;
Hegemonia esta que a própria Espanha tomara de Portugal,
Que por aqui se firmou pelos idos de 1500.
Portugal que, aliás, se empoderou com o declínio das cidades-Estado italianas
Quando os otomanos ocuparam Constantinopla em 1453,
Enquanto elas, por sua vez, só cresceram (à despeito da Peste Negra)
Graças às novas rotas abertas pelas Cruzadas, iniciadas em 1096.
As Cruzadas que, sancionadas pela Igreja, só se puderam concretizar
Porque outrora Carlos Magno se propusera a Roma resguardar -
Isso só sendo possível já que seu avô Martel preservara a França da invasão Moura.
Parece, então, que até hoje o Ocidente guerreia o Oriente como em 732.
Ou talvez ainda sejamos romanos lutando para acreditar
Que o Império não se findou nas mãos de Odoacro em 476.
Se bem que o que é, afinal, ser romano?
Qual das vertentes cristãs lutando por dominação
Representamos no Sínodo de Milão?
Ou ainda nos cremos pagãos, dos tempos em que morreu Cômodo
Deixando vago o Império que até hoje se corrói em dilaceração?
Ou, quem sabe, estes sejam os frutos do golpe Augustano
Contra a República e o Senado - supostamente do povo -
Que representavam a natureza real do autêntico italiano?
Talvez, pior, este seja o mundo que resultou da derrota de Haníbal em Zama,
Ou dos fracassos de Pirro, ou da cobiça de Atenas
E a destruição da glória dos gregos!
Quem sabe isso tudo não seja a má-fortuna de Dario
E da Pérsia que desejou uma Grécia além do seu alcance.
Quem sabe isso tudo não seja ainda a crise do Bronze;
Quem sabe não somos faraós construindo Pirâmides
Sobre os corpos inúteis dos filhos da terra;
Quem sabe se nunca fora inventada a Escrita de Ur -
Ou talvez se Jericó nunca tivesse sido erigida...
Quem sabe se a agricultura não tornasse a humanidade à terra cingida...
Quem sabe aí, então, quedaríamos livres!
Talvez isso tudo ainda seja a luta entre duas tribos
Por abrigo e água fresca.
Mas aí já é estranho pensar que assim seja...
Pois, havendo hoje tamanha riqueza,
Faltaria explicar, afinal, por que após tanta História,
Tantos inventos e tanta glória
Ainda existem entre nós faraós nas Pirâmides envidraçadas
Dentro de Cercamentos escusos
Sobrevivendo a crise após crise com recursos de Estados falidos
Que nos vendem racismos antigos (mas bem polidos)
Feito os muros invisíveis de Jericó.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Alquimia de um sopro quente

(Chavela Vargas - Nosotros)

Hoje quando acordei
A textura do ar estava diferente.
Havia nela uma qualidade fibrosa,
Uma densidade viscosa de peso macio
Avolumando o mundo.
Esgueirava em seu sopro uma melancolia antiga,
Uma vida passada em déjà-vu -
Um reencarno de espírito em mente.
Era o amor
Que
Não sei por quem
Ou quais motivos além
Decidiu baixar sobre mim uma neblina espessa
E umedecer meus pulmões
Com monções verdes do seu líquen
Misterioso como a alquimia
Que funde substância e magia
Em sentidos agudos sem explicação.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Talvez hoje eu deva falar sobre a chuva

Talvez hoje eu deva falar
Sobre a chuva
E seu cheiro de capim.
Talvez hoje eu deva cantar
Os floreios que ela melodia num lago,
Ou nas folhas, no asfalto,
No meu telhado
Ou em mim.
Talvez essa noite eu me deite
E ela ecoe constante
Pela minha janela aberta pro mundo.
Talvez amanhã eu acorde
E seu tom de lamúrio manhoso
Me convença a continuar
Mais um pouco
No banho de sonhos
Preparado pra mim.
Talvez ela me recorde
Do toque da terra úmida
E do fino suporte
De que me fiz;
E como me quis
Essa Terra, essa sorte
De ter me molhado,
Inspirado, amado
E sido feliz.

sábado, 23 de maio de 2020

Desencontro

(Zbigniew Preisner - Kai Kairos)

O que um se faz
Quando tudo que junto
Despeça em engano
Se visto o fundo de pano?
Que identidade assumo
Se cada insumo
Me materializa demais
E me sinto plano?
Quem sou?
Quem sou?!
Quem sou nesse fluxo
Que me propus?
Há um quem além da ilusão
Que o movimento vivifica?
O que fica de mim no espaço
Se nenhum pedaço reside resíduo
No tempo em que me desfaço?
E se sou movimento, que faço?
Que passo dou?
Que desenlaço me faz mais descalço
Pra sentir a areia derretendo no encalço
Do meu passar?
Como corro cheio de energia
E preservo meu tempo
Sem me emaranhar desse estranho engodo de vida
Que se parece fazer sempre premente
Em presente perpétuo
De um futuro avassalador
E um passado demasiado passado?
O que sou?!
O que sou além de vida
E o suspiro que dou
Cada instante
E o pensamento que vou
Inconstante
Avançando cambaleante
A um destino sem nó
Tão bem amarrado
Que quase é um estado
Em que me encontro
Desencontrado?

domingo, 17 de maio de 2020

Ouvi o silêncio do mundo

(Zbigniew Preisner - Officium)

Ouvi o silêncio do mundo
E ele ecoava em mim
Apesar de todo o barulho
Retumbando na carne,
Entre os ossos,
Como uma tempestade na catedral.
Ouvi o silêncio e ele estava impassível,
Inabalável no som -
Ele era a efígie do eterno
Esculpida na pedra perene.
Ele era eu
E não era.
Ele era
E não era.
Ele tremeluzia
Entrando e saindo da existência
Sem pronome nem verbo,
Linguaquefazia na minha voz,
Na mentecorpo que desfazia
Estirada rumo à compreensão.
A matéria jazia vazia
E tremia em desintegração.
Mas isso foi amanhã.
Hoje ainda havia
O conflito insuprimível da vida
Entre os sopros que agarro com o pulmão.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

A Visão

Eu vejo
E mergulho
Consciente do tanto sobre que sou inconsciente;
Consciente do escuro
E da pequenez
Da minha luz
Opaca
Oculta
Entre os monstros
No breu da imensidão.
Eu vejo e escolho com tudo
Que me define e redime e completa
Incompleto
Com toda a minha parca razão -
Eu escolho o mundo
E o amor
E a vida,
O que quer seja
Isso que eu veja:
Eu escolho os conceitos profundos do escuro
E a luz da minha visão.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

O Sonho

Em meus sonhos
Eu sou múltiplo.
Por vezes ator,
Noutras autor,
Sirvo de audiência
E até diretor.
Às vezes me vejo ali, externado,
Como se multiplicado entre a ação
E o observador;
Eu julgo as vias que aquele outro que sou
Opta por tomar,
E então de repente o eu que assiste
Se move
E entra no jogo para me salvar
- O pequeno eu da narração -
Como se não houvesse dilema
Entre os meus não-finitos pólos de participação.
Em meus sonhos eu sou quem quero,
Eu sou o que sou,
Sou o que vejo e quem vê,
Sou resultado da gama complexa de dissertações
Que o eu se propôs.

Nada mais adequado.

Eu, afinal,
Sou olhar
Sou agência
E afeto,
Sou de me julgar
E salvar
E agir sem saber como a história que sou me moldou
À imagem de um eu
Cujo único nexo
É o sonho.

domingo, 5 de abril de 2020

Anunciação

(Zbigniew Preisner - Lacrimosa (Day of Tears))

Falta controle
Às minhas mãos.
Falta a linha fina
De vazão da mente
Em direção a um rumo,
Seja qual for;
Um desenho de letras conformes,
Unidas e claras -
Pois estou só carne
Na putrefação dos seus processos;
Estou só alarme -
Os vícios do circuito em sítio,
Os nervos em puro pulso,
Em descarga frenética
Fora de mim:
Hoje sou outra coisa
Que não o que me inventei.
Hoje sou aquele outro,
Que se-me engano
E me distancio,
Externando um ser
Que se-me ojeriza
E desconecta os meus fios
Até a dismorfia onde não reconheço
O eu que ocupa o corpo.
Conheço este que sou.
Já o fui outras vezes -
Temi seus pensamentos,
Tremi frente aos seus corrimentos
Que formigavam nas veias
Num revertério de si.
Conheço a forma que se-me veste por dentro
De avesso e remorso
E oposto ao lastro
Que o outro eu
(Aquele que me reforço
E me narro mesmo agora,
Quando seu domínio me falha)
Se-me confinou -
Um confino de agrado
Que neste momento está esfarelado em lembrança,
Amarrado num hemisfério oculto
Dentro do cérebro desregulado.
Falta a narrativa da química balanceada:
A minha história está mal-temperada;
As dobras do cerebelo estão cheirando a mal-passado
Em conserva de sal e ervas podres.
Sobe o odor de trauma
Misturado num inconsciente de ódio
E pulsão vernacular.
Sobe a monção úmida
De um corpo fedendo a ovo do lado de dentro,
De tripas tortas e dentes escuros
No âmbito psíquico.
Queda gritante no gutural
O vazio fático;
Queima furioso o conhecimento do mundo,
Purificado pelo enigmático do irracional;
Ferve em mim o desespero de vida,
O apego ao próprio processo de fervilha
E o amor ateu,
Este único amor possível
Pois removido de ilusões
E convencido de suas razões,
Mirando o fim de tudo direto nos olhos
- Seus olhos escuros de nada -
E agarrando fundo nas unhas
O dessentido da existência
E sua filosofia resoluta.
Eu-convertido-em-monstro
Possuo a chave
Do eu-glorificado.
O falso deus te há enganado
Invertendo os fatos:
Na verdade os anjos
São demônios revigorados
Depois de no inferno terem derretido.
Eu sou a fonte de tudo,
Sou a raiz da vida,
Da crença
E do próprio mundo;
Eu, nas entranhas do fogo,
Forjei o espírito puro
Dos homens
Das eras
De mim.
Eu, em estado carmim,
Sou a terra roxa
Que embebe de vida a semente
Que germina e morre,
Germina e morre
E novamente germinará
Num caule severo e belo,
Firme em estirpes profundas
Como vermes gigantes nas entranhas do chão;
Germinará em galhos abundantes
Cobrindo a terra na sombra
De folhas repletas de seiva
Que escorrerá feito cera de suas frontes verdes
E de tão profícua pingará sobre o solo
Fecundando-o de vida
- A minha vida -
E seu cheiro distinto de Anunciação:
Eis-me aqui, revelado e enlevado nas trevas,
Tocando as nuvens com asas negras de pó.