domingo, 4 de outubro de 2020

Vozificado

Busco uma forma de dizer o indizível.
Quero botar no papel a matéria do silêncio
Que tenho em mim incorporado.
Mas as folhas se riem das minhas palavras;
Balançam ao vento, soprando à minha fronte todas as letras que em vida tracei.
As letras me traem...
Eu me traio.
As minhas naturezas ambíguas exigem um equilíbrio impossível
Entre o traço e o não-tracejado.
Elas comandam que eu resida em mim
Com meus significados
E os vaze sobre o mundo
Sem dizê-lo - sem sequer tocá-lo.
O silêncio demanda-me um sacrifício
Que não estou preparado a fazer quando em vida.
Eu preciso vazar em rompantes falados,
Eu preciso fazer-me um corpóreo vociferado!
Mas as minhas palavras corroem a matéria de tudo -
É preciso... É preciso silenciá-las.
É preciso superar a persona poeta
E buscar outros caminhos.
É preciso entender o anseio que vaza
E, se necessário,
Ressignificá-lo em abandono.
As palavras cada vez menos dizem qualquer coisa -
São todas mentiras esperando por se contar.
Ou, ao menos, são todas passado
E um novo presente preciso moldar.

E agora?

Disse o indizível
E vejo-o desfazer em farelos
Nas letras vazias que pairam como dunas
No deserto do que foi dito.
Outra vez mais meu anseio engole a verdade em palavras
Até a asfixia da bruta realidade
Soldando-a em falsidades prontas
Que no sopro do tempo se enferrujam.
Outra vez mais estou vozificado em palavras sujas
Coberto da grossa crosta de meias-verdades
Que não mais me são.

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