quarta-feira, 26 de junho de 2019

A Caveira Colorida

Conta-me as tuas verdades!
Se quiseres conto as minhas primeiro.
Mas logo aviso:
Elas são perigosas.
São destruidoras de lares
E seus confortos;
São inimigas da própria verdade
Num conflito interno
De se inteirar em paradoxo
Que pode corroer tuas entranhas
E derreter tua mente.
Porém, se te sentes pronto
Para o deserto em sua vastidão,
Vem ouvir o sopro das dunas
No canto frio da lua.
Logo vês que pinto uma imagem de beleza
Para adornar o rosto
Das minhas palavras.
Pinto-as com cores vivas
Como a uma caveira
No Día de los Muertos.
Minhas verdades são, afinal, de morte;
Violentas por natureza;
Elas pregam os sentidos ao seu vazio
E os deixam ali, acometidos de fim.
Elas dizem que os significados
Não são intrínsecos à vida
E enxergam as falhas
De todas as outras verdades
Que as ousam contraditar.
Minhas verdades são cruas
E até cruéis
Quando tiram de ti a magia
E te negam a razão
Notando em ti o irracional
E a torpe pequenez do explicável
Em linhas curtas
Que vão do nascer ao morrer
E pairam no interior
De todo e qualquer humano
Que nessa Terra tentou se significar.
Minhas verdades veem a linguagem
Que se acredita completa
Nas falas inconcretas
Com que te enganas;
Elas enxergam o vazio
Enorme e devorador
Desse nosso Universo em silêncio
E angustiante torpor.
Minhas verdades são o próprio medo
Que acomete as mentes
De tempos em tempos
Quando mergulhadas no animalesco primal;
Quando se questionam
Por que não há motivos a nos guiar.
Minhas verdades são pouco gentis...
Mas eu as pinto de cor
Não só para facilitar sua dor;
A tinta não é só a bruta cobertura do nada:
Ela é a própria compreensão
De que o valor é a casca que construímos
Como bem entendemos
Sobre a brancura do crânio.
É a verdade que diz
Que o sabor da vida
Está na criação
Do que quer seja a nossa intenção;
Está no colorir desimpedido
Em que nos iludimos,
E na aceitação da ilusão
Não como algo vazio e obscuro,
Mas sim como o brilho da existência -
O sopro do próprio mundo.
As minhas verdades não são para todos, eu entendo.
Portanto rescindo-as ao deserto
Onde fito a imensidão do silêncio
Sabendo das estrelas:
De suas mortes distantes que ainda reluzem.

terça-feira, 25 de junho de 2019

O Brilho da Soberba

Eu me quero tanto;
Me vejo tão mais
Do que por enquanto;
Me encanto de mim
A tal ponto
Que me perco do meu ser
Como Ícaro
Decadente rumo à realidade.
Pois, tal qual o príncipe alado,
Sou também dotado
De asas grandes
Com as quais a vida me adornou,
Mas às vezes me esqueço
Que a vida é um melado
Do qual se me colou;
A minha vida é um meu punhado
De influências e vivências
Num meu mundo isolado
E, no entanto, tão mais tocado
Pelos outros que me formaram.
Eu sou o cruzamento
Da minha pequenez
Com os meus contatos
E só por eles me formei tão informado,
Só por eles me disponho em altivez.
Eu não sei de tudo;
Eu nada sou;
Eu sou um casulo encontrado
Que voa apenas na altitude
Pra qual a vida lhe formou.
Se quiser voar mais alto
Que reforme o meu estado
Com a humilde consciência
Do quanto só graças à vida
Sou o que sou.

sábado, 22 de junho de 2019

Entre o silêncio e o Orgulho


Eu já participei inúmeras vezes da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Mais vezes do que consigo lembrar. Minha primeira foi em 2008, escondido da família. Na época morava na capital, mas voltava para a casa dos meus pais no interior todo final de semana. Quando disse que iria para São Paulo mais cedo no domingo, tive que negar que era em função dela. Eu já era assumido para todos os meus amigos – e, se formos sinceros, a minha família também já sabia a verdade –, mas o ato político de celebrar a minha homossexualidade abertamente junto à minha comunidade era um gigantesco tabu. Eu devia fazê-lo em segredo.
Ao longo dos anos fui me abrindo cada vez mais, aceitando a minha existência e aos poucos conquistando meu espaço, assim como o movimento fez. Comecei a me sentir cada vez mais em casa ali. Aprendi que as críticas à Parada vinham de todos os lados. Mas, fossem religiosos chamando-a de “perversão”, supostos aliados dizendo que uma “festa” não é uma “manifestação política de verdade” ou até mesmo gays conservadores alegando que o evento “mancha a reputação” da comunidade, corria por baixo de todos esses discursos uma ideia em comum: esse não é o jeito certo de fazer as coisas. Não é a forma correta de ser.
É curioso observar o mundo quando enxergamos esse pensamento subjacente. Sim, as coisas mudaram, mas em muitos aspectos ainda são exigidos hoje os mesmos silêncios que eram requeridos ontem. Eu ainda recebo olhares tortos na rua por meu jeito afeminado. Ainda sou julgado e diminuído por gente que conheço no dia a dia em função disso. Quando discuto direitos LGBT, dizem que só falo sobre isso (o que não é verdade): é melhor evitar o tema. Em nome da convivência harmoniosa, muitas vezes me ponho de volta no armário, apagando completamente o aspecto sexual e amoroso da minha vida para não criar conflitos. Sermos diferentes é justamente o que nos torna LGBT, mas para sermos aceitos ainda se exige de nós que essa diferença seja ocultada, que permaneça o máximo possível dentro do padrão. Quem foge a essa norma é silenciado de outras formas…
Isso não é exagero. A quantidade de jovens LGBT que vejo hoje passando pelas mesmas dificuldades que enfrentei com a minha família quando eu estava me descobrindo, e ainda mais aqueles que enfrentam coisa pior, sendo expulsos de casa e marginalizados, mostra que, enquanto sociedade, ainda estamos longe de aceitar de fato a diferença. E mesmo quando não há rejeição explícita, muita gente cria “bolhas” de aceitação onde parentes ou amigos(as) LGBT são encaixados numa lógica pela qual são tolerados mas nunca entendidos a fundo. O resultado é que, por não nos conhecerem de verdade, muitos continuam carregando estigmas a nosso respeito, e assim formam imagens distorcidas sobre nossa luta. Vide as eleições de 2018.
Eu sei que essas são questões complexas. Sei que mudanças são sempre lentas e graduais. Inclusive entendo que muitas vezes o que é, aos meus olhos, uma transformação minúscula exigiu grande esforço de quem mudou. Sei que lidar com o diferente pode ser difícil. Mas é necessário. E é exatamente por isso que a Parada continua sendo tão importante. Ela é um eterno lembrete de que a diversidade é uma coisa boa, que deve ser celebrada. É um constante alerta para sairmos da zona de conforto em nossos relacionamentos com parentes e amigos, para tentar aprender o que realmente significa ser LGBT com aqueles ao nosso redor que vivem isso na pele. É uma declaração em defesa da igualdade nas diferenças à qual aspiramos. E, para nós LGBTs, é um evento onde resgatamos a nossa confiança interior para continuar transformando o mundo.
É em nome desse espírito que decidi escrever esse texto. Há alguns anos vou à Parada sem precisar me esconder ativamente, como fiz onze anos atrás. Mas assumi muitos silêncios em nome da convivência ou do convencimento paciente a longo prazo. E por mais que isso não seja de todo ruim, às vezes é necessário enfrentar o medo e dizer em alto e bom som: eu sou diferente e tenho direito de sê-lo. Eu sou gay e estarei na rua com a minha comunidade nesse domingo. Faço isso não só pelo jovem que fui onze anos atrás, que precisou silenciar para poder lutar, mas também por entender que onde estou hoje torna imperativo que eu me manifeste em apoio àqueles que ainda não conquistaram essa e outras liberdades. Ser livre, afinal, é o cerne da nossa batalha; é o verdadeiro significado do nosso Orgulho.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Vibrato

Notas que oscilo
Em tons que vacilo
Um vibrato acidental.
A câmara é obscura,
O coro é puro
No eco que gruta
As colunas em som.
Eu sou a eterna caverna,
Catedral do terreno,
Que me inferno
Em cores de cor
Como um mantra
Redesenhado
Mil e uma vezes
Por sobre as paredes
E nunca vislumbrado.
Eu sou a voz que adentra
E penetra em tinta
A glote esponjosa
E se aloja
Para o solo contemplo
Da escuridão.
Eu sou a carne
Que o tempo ditou
E dita em retorno
O tremer da imensidão.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

O Lírio do Dragão

O lírio do dragão
Vermelho e amarelo
Franze
Colorido
O seu possante olhar
Furioso e multicromático
Mas
É só um lírio

domingo, 16 de junho de 2019

O Pensador Mágico

(Madonna - Extreme Occident)

É subjetivo.
Bastante subjetivo.
Dolorosamente subjetivo.
Mas é melhor que assim seja.
Sendo tudo tão quebrantável,
Ironicamente tem mais sentido
E fica mais fácil se apoiar
Com a delicadeza que o equilíbrio requer.
Fica claro o que antes era só subliminar:
A fragilidade escondida
Nas vozes duras
De ideologias menos maduras
E pensamentos mais solitários
Apesar de, outra vez contraditório, menos isolados.
O cinismo romântico é a minha sensatez
De quem acredita a fundo
Sabendo que minha crença
É nada mais que isso:
Crendice.
A mente, afinal, é essa estrutura
Que se precisa na magia
Mesmo quando entende
Que ela própria é a sua ilusionista.
A ironia maior da vida
É esse encontro
Que soa como perdição
Aos ouvidos desatentos;
Que treme no profundo
Balançando suas estruturas
E até teme o fim de tudo
No rugido do tempo
Mas não se destrói.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Difícil

É difícil acreditar
Que possa haver poesia
Onde a mente resfria
E se medita contemplativa
Na calmaria,
Mas é importante tentar.
É difícil acreditar
No amor
Quando se distancia o suficiente
Para enxergar as limitações
Que amar impõe
Sobre a compreensão de si
E da própria conexão
A que se atribui tal fantasia.
Especialmente difícil
Na sociedade do desvínculo
Em que o indivíduo é o monólito
Sobre o qual se edifica
A Igreja do futuro,
Fria e produtiva,
Idealizada no aperfeiçoamento pessoal
Em que nos escolhemos
Em nome do equilíbrio
Em oposição ao outro
E suas próprias atribulações,
Trombando apenas quando necessário
Para a automanutenção.
Não que isso seja uma crítica -
Amo ser o indivíduo
Que me construí
Na vida que escolhi
Dentre os moldes que se me ofereceram.
Amo o distanciamento
E a tecnicidade
Que o meu pensamento adquire
Quando estou saudável...
Mas me vejo forçado a questionar a essência
Da ideologia que em nós há se instaurado
Em nome dessa nossa condição,
Ao menos para lembrar
Que também ela é construção
E pode ser que em breve
O futuro nos exprima
Dessa crença a contradição,
E então seja necessário
Desfazê-la em outra coisa
Meio líquida
Como a solidez da vida
Sempre requereu.
É difícil...
O amor me era tanto
E hoje soa tão pouco e doente,
Como se de repente
- Apesar de anos em processo -
Aquele cerne no qual era tão crente
Tivesse evaporado
E eu, então, tivesse me encontrado
Numa nova versão
Que o Eu passado sequer reconheceria
Se a tivesse cruzado.
Talvez, enfim,
A poesia agora esteja no translado,
Na paciente observação
Das margens a viajar
Vagarosamente para trás
Enquanto o Eu flutua inadvertido
Num sentido difuso
Que não se propositou
Mas no rio da vida se formou.
Talvez a fluidez da poesia seja, agora,
A rispidez das palavras brutas
Arranhando a borda do pensamento
Conforme desenha nele
Uma imagem impura,
Tal qual o material inconcreto
No qual ela se costura.
Difícil...
Mas a complexidade, na verdade,
Deixa tudo tão mais claro
Que difícil, afinal,
É acreditar
Que a poesia um dia esgota
Em suas formas de brotar,
Sendo que ela é infinita
E, conforme envelhece,
Se esconde melhor
Em significados mais graúdos.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Mudança

Eu adubei a minha muda
E cultivei
Num pequeno pote de cerâmica
Que rachou conforme cresceram as raízes
A expandirem
Dominando a varanda.
Entraram no apartamento,
Vazaram pela fachada do prédio,
Escorreram sobre a rua
E invadiram a praça;
Dominaram o mundo
Misturadas em outras fibras
De outras plantas
A se entrelaçarem
Num desenho sem nexo
Quase inorgânico e tubular,
Mecânico em sua estética aparentemente vazia...
Mas pulsando como uma jugular.
Não sei onde toca
A minha semente,
Onde afunda a minha corrente interminável
Sob a superfície da Terra.
Só sei que, de alguma forma,
Tudo começou na muda.

sábado, 1 de junho de 2019

Inanna-Ishtar

(Loreena McKennitt - Marco Polo)

Eis-me aqui,
Onde a areia cinde
Entre Tigre e Eufrates,
Mergulhado em deserto até o coração
Sem saber qual rumo
A jornada me requer
Em desnavegação.
Eis-me
Entre os poderes
Das pátrias passadas
E tantas quantas futuras ainda virão;
E me pergunto qual meu lugar
No jogo dos homens
Em arrebentação.
Eis-me
Distante da glória
Em transe profundo
Vivendo das coisas que enfim passarão;
E busco meu prumo
Antes que afunde
A embarcação.
Eis
Então
A estrela
Que rasga os céus
Com oito pontas de fogo
Queimando o deserto arenoso,
Transformando a Mesopotâmia em espelho
Onde o coração pode navegar sem os velhos anseios
Das crenças fixas de sexo, poder ou quaisquer outros freios.
Eis-ma Eu, transfigurada na língua dos céus em fluir de todas as rios.