segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A Fenda da Porta

São muitas as vezes que o silêncio passa
Discreto nas fendas da vida corrida
E as permeia de milagroso estar
Como um óleo que desarranha o verter da porta
E permite ao vento assoprar
Sem assombrá-la,
Sem perturbá-la além dos seus devaneios mudos,
Acedendo a se conformar apenas
Com um último estalo agudo,
Um estrondo de suspiro finado.
São tantas as vezes que o silêncio passa
E ainda assim rangemos
Como se o som se lhe complementasse
Um algo a mais de existência,
Mas não -

Não.

O silêncio não se arreia.
Ele se despe dos ornamentos viçosos,
Assopra a candeia
E faz das trevas a sua morada -
A morada da grossa noite do espanto
Onde reluzem os brilhos negros
E os sons obtusos
Na estranha contradição
Dos medos que se aceitam
E dormitam cercados de sonhos.

sábado, 10 de outubro de 2020

Meu Pecado

(Pecadora - Los Hermanos Rosario)

Acordei na madrugada
Depois de ter sonhado
Que dormia acordado
Enclausurado
Nos demônios da excessiva sobriedade;
Que dormia angelicado
O sono dos que foram muito justos,
Tão justos que apertados
Morreram sufocados
Empapados até os pulmões dos seus babados.
Sonhei que era cristão
E que era devorado
De pecado e extrema-unção,
Assim bem embaralhado -
Um remédio encorpado
De veneno e agradável negação.
Sonhei que o vinho tinha acabado
E que eu tinha me quebrado
Em nome da restauração;
Sonhei que tinha errado
- Não, isto não foi sonhado -
Mas sonhei que o erro
Tinha se me devorado
E regurgitado em lição
E, Deus me livre,
Eu pregado desse sonho bem prensado
Tinha me consagrado
Ao professorado
Da humana salvação.
Acordei, pois, madrugado
E lembrei do meu passado
E dancei descompassado
Num gingado que é tão são,
Tão desperto, encontrado,
Só por ser tão tresloucado
Sem remédio e sem perdão.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

O Rumo

Quando andei pela floresta do pensamento,
Tocava os troncos ásperos com mãos de seda;
Passo meus pés nus na espessa argamassa de chão
Esculpida de gramas, lamas, folhas secas
E eventuais pedregulhos -
Pois que andar é calejar.
Andarilharia no escuro das copas
À luz dos raios cantados em passaredo
E do silêncio que dilui na neblina da fronteira.
Quando caminho nos bosques de mim
Eu me desencontrarei,
Mas isso vai bem.
Não há outro lugar que procure
Se não essas antigas farpas,
Esse ar úmido e essa passagem de musgo me encaminhando.

domingo, 4 de outubro de 2020

Vozificado

Busco uma forma de dizer o indizível.
Quero botar no papel a matéria do silêncio
Que tenho em mim incorporado.
Mas as folhas se riem das minhas palavras;
Balançam ao vento, soprando à minha fronte todas as letras que em vida tracei.
As letras me traem...
Eu me traio.
As minhas naturezas ambíguas exigem um equilíbrio impossível
Entre o traço e o não-tracejado.
Elas comandam que eu resida em mim
Com meus significados
E os vaze sobre o mundo
Sem dizê-lo - sem sequer tocá-lo.
O silêncio demanda-me um sacrifício
Que não estou preparado a fazer quando em vida.
Eu preciso vazar em rompantes falados,
Eu preciso fazer-me um corpóreo vociferado!
Mas as minhas palavras corroem a matéria de tudo -
É preciso... É preciso silenciá-las.
É preciso superar a persona poeta
E buscar outros caminhos.
É preciso entender o anseio que vaza
E, se necessário,
Ressignificá-lo em abandono.
As palavras cada vez menos dizem qualquer coisa -
São todas mentiras esperando por se contar.
Ou, ao menos, são todas passado
E um novo presente preciso moldar.

E agora?

Disse o indizível
E vejo-o desfazer em farelos
Nas letras vazias que pairam como dunas
No deserto do que foi dito.
Outra vez mais meu anseio engole a verdade em palavras
Até a asfixia da bruta realidade
Soldando-a em falsidades prontas
Que no sopro do tempo se enferrujam.
Outra vez mais estou vozificado em palavras sujas
Coberto da grossa crosta de meias-verdades
Que não mais me são.