De repente um sopro do vento me trouxe em seu hálito quente a lembrança perdida de um dia de infância em Ohio. Ele tinha um odor de verão outonal – uma mistura de folhas secas, cujos veios craquelantes vertiam um pólen temperado de amarelo sazonal, com o aroma distante e fugaz de protetor solar e suor que exalava do meu próprio corpo e subia às narinas misturado nas voltas bruxuleantes da lufada de ar. A corrente se embrenhou por sob minha camisa, aquecendo-me uma suave e seduzente carícia ao correr seus dedos da minha lombar ao pescoço, gentilmente guiando-me as sensações rumo a um estado de prazer inocente que me transportou de volta à meninez. E eu me surpreendi com a tamanha facilidade com que os sentidos podem dirigir-nos a mente, em seu torpor inconsciente, às direções aleatórias a que seus desígnios fortuitos julgarem momentaneamente mais propícias.
Tanto assim que, tão subitamente quanto veio, o sentimento feneceu conforme a rajada fresca passou, deixando-me apenas o agridoce sabor de uma memória encarnada mas perdida, um sentimento como o de ter em mãos uma pérola brevemente reencontrada somente para outra vez vê-la escorregar e escapar-me com sua oleosidade úmida e inconstante. E a mente, assim estimulada, sentiu a sede dos entes almados; a sede dos entes que anseiam por um retorno do corpo aos estados de tempo e espaço inalcançáveis do longínquo passado – passado que, como um oásis ambulante, vem e vai no deserto do presente segundo seu próprio e insólito projeto de sentimento, sem que se tenha sobre ele qualquer sombra de controle; que deixa em seu rastro a miragem do desejo, do anseio que busca e busca, sem sucesso, por um retorno.
E, em meu desespero por reagarrar o passado perdido, entendi de relance que também esta reação, este presente estado de sequidão desértica, era resultado das amorfas ondas que guiam o percalço do meu pensamento. Também ela era a decorrência daquele bafejo de vento: era sua condição posterior que me fazia agora como a areia que, quando o mar recuou, restou parcamente molhada e sugou ao seu fundo os resquícios da água salgada, tornando-se ainda mais ressecada do que antes estivera, pois, ao ser exposta à cruel destreza dos elementos em concedê-la uma pequena amostra daquilo que jamais poderia ser seu por mais do que alguns segundos, seria natural que reagisse com tamanha exasperação, tamanho apetite e avidez.
Minha inconsistência e leviandade me causaram, então, uma auto-repulsa. Julguei-me por minha fragilidade, minha pequenez frente às intempéries mundanas, minha total falta de controle sobre meu próprio destino. Considerei-me demasiado alienado, incapaz de compreender mesmo o mais simplório dos fenômenos – essa química da fortuna, a física material do acaso, a biologia científica da sequência dos eventos encadenados que, como os grilhões esverdeados que se erguem cobertos de musgo das profundezas cavernosas do mar conforme o maquinário do meu navio gira suas manivelas e roldanas mecanicamente, fazem subir a âncora do meu Ser para que o trilho da vida possa seguir metodicamente o seu percurso pré-estabelecido.
Contudo, também aí encontrei mais um sinal da minha natureza submissa aos desígnios do mistério. Também no meu cientificismo maquinal, na crítica desconstrutiva e cínica, encontrei os indícios da reação responsiva e superficial: afinal, não seria esse niilismo enfadonho e conformado a decorrência natural do estado de amargura e crueza que toma os seres quando confrontados com problemas para os quais todavia não têm respostas boas o suficiente? Não seria essa atitude uma resposta fácil, uma saída simples para a minha questão de liberdade, pela qual me diria “não há como fugir, somos todos fadados ao jugo do destino que se esquiva das nossas mãos”? Ou “não há porque lutar contra a tendência inescapável do arbítrio inconsciente das Eras”? Também essa resposta, com o tempo, se mostrou inconsequente, incapaz de abordar com um mínimo de inteireza a minha existência, de explicar o espírito que ainda jazia ambíguo e confrontacional no fundo de meu peito.
Pois o tempo me mostrava que, viessem tantas ventanias quanto fossem, restava-me ainda no fundo do palato um gosto místico de vida que se sobrepujava aos breves sabores do instantâneo. Com o passar e acumular dos momentos, ia se sedimentando em mim um caule, uma nervura central, que me sustentava elétrico e, lentamente, me encaminhava de volta ao meu cerne, passadas as inconstâncias. Aos poucos o balanço se-me abrandava e a memória daquele vento externo ficava marcada apenas no discreto dançar da minha ramagem mais avulsa. E mesmo nas inconstâncias parecia ainda haver em mim uma envergadura que se-me dobrava somente até os limites de mim, de um “Eu” que se parecia sustentar ainda constante, mesmo que prolixo de infinitos Eus que me povoavam sinfonicamente. Num dia, Eu era exuberante, cheio de poesia e vida, feito de excessos que, logo em seguida, chamavam um outro Eu mais recluso e desafeto, composto de augúrios lamentosos e estranhos arrependimentos; e a ele se seguia um outro cuja conformidade singela e amorosa fazia secar as lamúrias; e um quarto Eu então se sucedia, querendo o silêncio inconcreto de uma solitude contemplativa; e depois vinha aquele que só queria o concreto, o racional e imediato, cuja sede é da coisa talhada em objeto, até que outro Eu ainda se-lhe demandava uma atenção esparsa ao desconexo, como que propositalmente querendo desligar-me da estática do contentamento. E, no meio de todos, corria profunda como um feixe a estrutura central de uma entidade imaterial, difícil de descrever, feita apenas de tempo sobre tempo, escorrendo numa seiva grossa que desce e sobe sem fazer cederem as paredes da pele, sem que os seus contornos epidérmicos, tão singelos e frágeis, sequer imaginem que poderiam sucumbir. Pois que emana nesse sumo a própria essência da conexão, uma ligação atômica e molecular tão poderosa e decidida que não se-me poderia desmistificar sem antes perderem-se as palavras num desatino desconvexo de elucubrações que só aos poetas, em seu sacerdócio enigmático, poderia ser dado tocar.
E, encontrado esse oculto pedaço de mistério pulsando dentro de mim, pude, enfim, considerar-me liberto das sazonalidades aleatórias do alento. Pude, afinal, entender-me inteirado, completo, senhor de mim mesmo, criador do tempo e das próprias intempéries. Pois que apenas assim, feito parte de dentro do amplo mistério, eu poderia sobrepor-me ao mistério de fora e ser livre dos caprichos do vento que me soprou até Ohio; poderia ser livre mas, simultaneamente, ser parte dele e assim esbaldar-me no meu balanço de veraneio outonal.
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