Foi então que eu entendi que uma grossa névoa me encobria.
Quando olhava o mundo, parecia enxergá-lo sempre tão nítido; as curvas do engano, coitadas: olhava-as de longe e, desde o princípio, já conhecia suas mentiras esguias. Especialmente em se tratando do corpo e de sua linguagem: para lê-lo, me assemelhava a um profeta. Predizia com perfeição as intenções que se esboçavam nas aparentes contradições que os mais discretos movimentos produziam. Parecia ser capaz de farejar tensões sexuais no ar com a fina navalha do olfato; era capaz de envolver por inteiro na mão as tristezas alheias com um simples toque; escutava as profundezas de uma confusão interna qualquer mesmo que de relance; conseguia mirar uma dor direto em seu âmago apenas com um olhar lançado certeiro dentro dos olhos de outrem. O mundo – os outros – se-me revelavam com uma facilidade imensa. Bastavam uns poucos instantes e lá estavam eles, expostos.
Ter essas habilidades era maravilhoso para alguém como eu: significava que, rapidamente, eu era capaz de juntar umas feições aleatórias de personalidade e embalsamá-las num traço com a minha caneta sobre o papel. Com altivez, observava dos picos do meu silêncio – e, às vezes, até mesmo a partir da vista comum de um participante intento – as clareiras que se manifestavam entre as palavras das gentes de carne e osso. Depois, bastava anotá-las num canto de rodapé da mente e deixá-las ali decantando, aprofundando suas raízes, até que elas se tecessem mais harmoniosas e belas, com elegância suficiente para enfim pousarem uma personagem na folha.
O curioso foi que demorei para descobrir que conseguia fazer isso. A princípio, exerci a tarefa sem sucesso algum: as conexões eram simplistas demais; os mortos-vivos que traçava em meu caderno mal paravam em pé, tamanha a fraqueza das ataduras que lhes impunha no processo de mumificação. Mas, com um pouco de experiência, fui adquirindo o poder de moldar suas musculaturas de maneira consistente debaixo das faixas descritivas com que os compunha. Aos poucos, seus pensamentos foram ganhando forma, e logo já lembravam seres inteiramente viventes, quase independentes de seu criador.
Fazê-los falar foi outro grande desafio. Suas palavras soavam mecânicas: por vezes pareciam épicas, frequentemente revelando coisa demais em muito pouco tempo – mal conseguiam durar uma troca de olhares no quadro sem derramar por inteiro seus seres em frases excessivamente desejosas, cheias de uma convicção amorosa inconvincente. Era culpa minha: aprendera com a poesia a esbanjar de uma só vez todo o sentimento do coração, e até em amplas partes da minha vida me intoxiquei dessa estética imposição, expondo minhas entranhas em conversas de identificação e reconhecimento com surpreendente facilidade. O problema é que nem todos são como eu. Costumam, na verdade, fazer o contrário, esquecendo suas cóleras mais agudas para as horas rotundas da noite, momento no qual a mente profunda enfim coruja escusa os seus sofrimentos; durante o dia, ficam apenas a animar repertórios mímicos irrelevantes, preferindo guardar seus anseios entre as colunas escuras do não-dito. É só nos detalhes de suas declamações – nas entrelinhas, nas repetições, nos erros e em outras ligeiras entregas de emoções – que os versos do cotidiano da maioria dos seres revelam as suas reais intenções. Ao repassar, portanto, suas palavras ao papel sem essa devida filtragem, fazia-os soarem falsos, como que incautos e românticos, quase desejosos de verem seus contos se encerrarem ainda na primeira linha.
Precisei, então, trabalhar a estética do segredo. Isso não me foi agradável. Em segredo guardava somente as partes minhas que não desejava encontrar, e cruzá-las com as verdades outras que me via ávido por revelar fez com que subitamente me encontrasse a mim mesmo ali, nu e exposto. Afinal, as verdades alheias rapidamente começaram a se entrecruzar com as minhas e a arrancar-lhes, no processo, uns trapos. Passavam, ademais, com uma sensualidade urgente, que seduzia meus próprios segredos para fora, forçando-os a se revelarem quase em sua inteireza perante a forte luz do meu suposto alheamento. Expor a outrem, percebi quase de imediato, significava necessariamente expor a mim mesmo, o que, por sua vez, implicava em constatar que escrever uma narrativa é um ato profundamente sexual (a esse ponto vale acrescentar uma irônica reflexão: se for verdade o que aqui é dito, não será surpreendente concluir que há livros bons e livros ruins da mesma maneira que há transas ruins e transas boas. O segredo parece estar, se ainda não estiver suficientemente claro, na entrega).
No entanto, olhar para mim parecia ser muito mais doloroso. Ver os esforços alheios, suas palavras e movimentos, era tão fácil! Já olhar para dentro e ver essa gosma de penumbra arrastando-se sobre si mesma, multiplicando sua densidade, gerando miragens com suas ramagens nebulosas de espuma, fazendo-me crer que, numa hora, eu era uma coisa e, logo depois, outra, apagando as palavras do meu pensamento quase no mesmo instante em que elas se haviam formulado, misturando sentimentos novos com antigos, sensações com memórias, realidade com mito, silêncio e solidão com excesso de interna conversação… Isso simplesmente era complicado demais. Enxergar-me assim era muito diferente daquele meu reflexivo olhar poético: enquanto na poesia ele se-me lançava numa pequenez circunspecta, num relance de compreensão que cabia muito bem nas camadas relativamente profundas do momentâneo, o reflexo do longo intento parecia demandar um esforço de autocompreensão muito maior, quase sobrenatural.
Foi então que entendi que uma grossa névoa me encobria: a névoa que se formava nos meus próprios olhos quando eles se encontravam virados para dentro. Ao inverterem-se sobre mim, eles ficavam inteiramente inundados de moscas volantes: se ao olhar para fora eu as via esparsas como navegantes perdidos em meio à (aparentemente) perfeita visão, quando meu olhar se virava para o interior, de repente a pupila parecia toda celulada, feita de infinitos minúsculos seres a se-me comporem a própria luz, colidindo em choques elétricos que me geravam ilusões de coloração. Olhar-me foi subitamente me decompor, sem saber em que canto do cérebro eu poderia novamente juntar-me – sem saber em que canto de corpo eu conseguiria amontoar os desconexos pedaços de mirar que se-me lançavam e montar, com eles, uma imagem coesa. Descobrir-me a névoa foi o desengano da própria visão.
Entendi, assim, que, para me ver, meu ser teria que ser todo draga: de todo aquele meu entulho confuso e sombrio, teria que me fazer um navio e, uma vez feito, zarpar nele por entre as espessas areias do rio até o encontro de um quadro que eu me pudesse pintar, mesmo que por um ínfimo, ridículo e inexistente instante. Eu precisava, também a mim, me mumificar. Um poema não bastaria: nele não encontraria a paz da profunda dragagem; não lançaria minha voz contra o poço escuro, nem muito menos à sua beira esperaria durante longos momentos o retorno do eco que me diria um pedaço de verdade. A verdade do instante de mim só se poderia encontrar, agora, numa mais espessa longanimidade: num tempo que, embora ainda curto, se estende por mais do que um alarde; num tempo que, apesar de ligeiro, parece que chega tarde.
Olhando-me dessa maneira, com esse profundo desconhecimento em meio a um cipoal de descontentamento – de desconforto e auto-inimizade –, percebi-me incompleto. Percebi, e isso é mais e pior, um olhar incompleto. Entendi-me incapaz de encontrar nos olhares alheios lançados sobre mim quaisquer sinais de verdade. Descobri-me trancado na nuvem da inobservância, como se eu fosse um farol condenado a projetar durante o eterno sua luz sobre a escuridão do mar sem nunca quedar-se, por dentro, iluminado; como se fosse um farol, mas a tempestade corroesse não os rochedos, pois ela estava, em segredo, corroendo o meu teto, a minha lanterna, os meus degraus, os meus silêncios e, acima de tudo, os meus sinais. Era uma tormenta não de ondas, nem sequer saída das fossas abissais: ela existia em degredo, imponente brotando da minha carne – nascendo da própria terra como monolito negro feito inconcreto através da ascensão do penedo.
E, ao encontrar-me assim empedernido – enegrecido de granizo a turvar-me violento –, vi-me prostrado de dor, curvado ao relento. As gaivotas grasnavam alucinadas ao meu redor, o mato ralo balançava ao vento na beira da areia que, dura, esquecia seu intento, deixando gelar-se nas ondas do mar. Do alto do meu farol, vi a maresia que exalava de dentro oxidando o metal da minha edificação. Vi o furor da minha luz, repleta de escuridão, girando por sobre o mundo externo num turbilhão, buscando arrogante, defensiva e ardorosa postar-se segura em prosa numa longínqua nau desconhecida. E, horrorizado, vi-me enfim caracol em degraus descendo, saindo do meu orgulhoso sustento, deixando para trás a redoma de vidro que me quis criar. Pois aquela torre era um tormento, e sabia (graças aos anos de poesia) que a saída só poderia encontrar-se no fundo, depois da fuligem, do musgo, do adubo, num lugar onde a pedra se faz liquefeita.
Desci e vi, então, meus lençóis freáticos se agitando no subterrâneo de mim, conforme o meu falso conhecimento ia se enveredando por dentro das suas covas primais. As águas de terra úmida me soterravam, prendiam minha respiração – mas eu já as sabia apenas portais, um pedaço do caminho onde as dores purificam em rituais de dessagração. E fui nadando, navegando minha nau de draga, afundando nos confins do horror, sabendo que somente através dele me encontraria com a parca verdade que me chamava.
Avançando no extenso mergulho, cheguei enfim a uma caverna onde as estalactites do meu coração pingavam um longo e silencioso unguento. Meu peito tremia – brandia minha caixa torácica, fazendo soar como tambor até a minha pele debaixo das gotas que desciam uma a uma sobre meu ser. Era a água que escorria das minhas veias com a lentidão do tempo mais profundo, caindo sobre minha testa num ritmo de anunciação: primeiro zunia um zumbido grave, depois retumbava no distante oculto, e por fim voltava, quase imperceptível, vibrando nas mínimas ondas da fina bruma que cobria o chão. E pingava… pingava… pingava… pingava repleta de tempo. Corria cheia de esquecimento, dizendo que me sumia, que me fazia uma tênue linha por sobre o intento, e me prometia ser guia, criar-me outra via que escorreria por entre os caminhos da terra, traçando os veios da folha por mim. E eu ficaria repleto, silente e perplexo, no subterrâneo da minha emoção.
E houve, por um instante, um som de liberdade, audível como o mar.
Quando olhava o mundo, parecia enxergá-lo sempre tão nítido; as curvas do engano, coitadas: olhava-as de longe e, desde o princípio, já conhecia suas mentiras esguias. Especialmente em se tratando do corpo e de sua linguagem: para lê-lo, me assemelhava a um profeta. Predizia com perfeição as intenções que se esboçavam nas aparentes contradições que os mais discretos movimentos produziam. Parecia ser capaz de farejar tensões sexuais no ar com a fina navalha do olfato; era capaz de envolver por inteiro na mão as tristezas alheias com um simples toque; escutava as profundezas de uma confusão interna qualquer mesmo que de relance; conseguia mirar uma dor direto em seu âmago apenas com um olhar lançado certeiro dentro dos olhos de outrem. O mundo – os outros – se-me revelavam com uma facilidade imensa. Bastavam uns poucos instantes e lá estavam eles, expostos.
Ter essas habilidades era maravilhoso para alguém como eu: significava que, rapidamente, eu era capaz de juntar umas feições aleatórias de personalidade e embalsamá-las num traço com a minha caneta sobre o papel. Com altivez, observava dos picos do meu silêncio – e, às vezes, até mesmo a partir da vista comum de um participante intento – as clareiras que se manifestavam entre as palavras das gentes de carne e osso. Depois, bastava anotá-las num canto de rodapé da mente e deixá-las ali decantando, aprofundando suas raízes, até que elas se tecessem mais harmoniosas e belas, com elegância suficiente para enfim pousarem uma personagem na folha.
O curioso foi que demorei para descobrir que conseguia fazer isso. A princípio, exerci a tarefa sem sucesso algum: as conexões eram simplistas demais; os mortos-vivos que traçava em meu caderno mal paravam em pé, tamanha a fraqueza das ataduras que lhes impunha no processo de mumificação. Mas, com um pouco de experiência, fui adquirindo o poder de moldar suas musculaturas de maneira consistente debaixo das faixas descritivas com que os compunha. Aos poucos, seus pensamentos foram ganhando forma, e logo já lembravam seres inteiramente viventes, quase independentes de seu criador.
Fazê-los falar foi outro grande desafio. Suas palavras soavam mecânicas: por vezes pareciam épicas, frequentemente revelando coisa demais em muito pouco tempo – mal conseguiam durar uma troca de olhares no quadro sem derramar por inteiro seus seres em frases excessivamente desejosas, cheias de uma convicção amorosa inconvincente. Era culpa minha: aprendera com a poesia a esbanjar de uma só vez todo o sentimento do coração, e até em amplas partes da minha vida me intoxiquei dessa estética imposição, expondo minhas entranhas em conversas de identificação e reconhecimento com surpreendente facilidade. O problema é que nem todos são como eu. Costumam, na verdade, fazer o contrário, esquecendo suas cóleras mais agudas para as horas rotundas da noite, momento no qual a mente profunda enfim coruja escusa os seus sofrimentos; durante o dia, ficam apenas a animar repertórios mímicos irrelevantes, preferindo guardar seus anseios entre as colunas escuras do não-dito. É só nos detalhes de suas declamações – nas entrelinhas, nas repetições, nos erros e em outras ligeiras entregas de emoções – que os versos do cotidiano da maioria dos seres revelam as suas reais intenções. Ao repassar, portanto, suas palavras ao papel sem essa devida filtragem, fazia-os soarem falsos, como que incautos e românticos, quase desejosos de verem seus contos se encerrarem ainda na primeira linha.
Precisei, então, trabalhar a estética do segredo. Isso não me foi agradável. Em segredo guardava somente as partes minhas que não desejava encontrar, e cruzá-las com as verdades outras que me via ávido por revelar fez com que subitamente me encontrasse a mim mesmo ali, nu e exposto. Afinal, as verdades alheias rapidamente começaram a se entrecruzar com as minhas e a arrancar-lhes, no processo, uns trapos. Passavam, ademais, com uma sensualidade urgente, que seduzia meus próprios segredos para fora, forçando-os a se revelarem quase em sua inteireza perante a forte luz do meu suposto alheamento. Expor a outrem, percebi quase de imediato, significava necessariamente expor a mim mesmo, o que, por sua vez, implicava em constatar que escrever uma narrativa é um ato profundamente sexual (a esse ponto vale acrescentar uma irônica reflexão: se for verdade o que aqui é dito, não será surpreendente concluir que há livros bons e livros ruins da mesma maneira que há transas ruins e transas boas. O segredo parece estar, se ainda não estiver suficientemente claro, na entrega).
No entanto, olhar para mim parecia ser muito mais doloroso. Ver os esforços alheios, suas palavras e movimentos, era tão fácil! Já olhar para dentro e ver essa gosma de penumbra arrastando-se sobre si mesma, multiplicando sua densidade, gerando miragens com suas ramagens nebulosas de espuma, fazendo-me crer que, numa hora, eu era uma coisa e, logo depois, outra, apagando as palavras do meu pensamento quase no mesmo instante em que elas se haviam formulado, misturando sentimentos novos com antigos, sensações com memórias, realidade com mito, silêncio e solidão com excesso de interna conversação… Isso simplesmente era complicado demais. Enxergar-me assim era muito diferente daquele meu reflexivo olhar poético: enquanto na poesia ele se-me lançava numa pequenez circunspecta, num relance de compreensão que cabia muito bem nas camadas relativamente profundas do momentâneo, o reflexo do longo intento parecia demandar um esforço de autocompreensão muito maior, quase sobrenatural.
Foi então que entendi que uma grossa névoa me encobria: a névoa que se formava nos meus próprios olhos quando eles se encontravam virados para dentro. Ao inverterem-se sobre mim, eles ficavam inteiramente inundados de moscas volantes: se ao olhar para fora eu as via esparsas como navegantes perdidos em meio à (aparentemente) perfeita visão, quando meu olhar se virava para o interior, de repente a pupila parecia toda celulada, feita de infinitos minúsculos seres a se-me comporem a própria luz, colidindo em choques elétricos que me geravam ilusões de coloração. Olhar-me foi subitamente me decompor, sem saber em que canto do cérebro eu poderia novamente juntar-me – sem saber em que canto de corpo eu conseguiria amontoar os desconexos pedaços de mirar que se-me lançavam e montar, com eles, uma imagem coesa. Descobrir-me a névoa foi o desengano da própria visão.
Entendi, assim, que, para me ver, meu ser teria que ser todo draga: de todo aquele meu entulho confuso e sombrio, teria que me fazer um navio e, uma vez feito, zarpar nele por entre as espessas areias do rio até o encontro de um quadro que eu me pudesse pintar, mesmo que por um ínfimo, ridículo e inexistente instante. Eu precisava, também a mim, me mumificar. Um poema não bastaria: nele não encontraria a paz da profunda dragagem; não lançaria minha voz contra o poço escuro, nem muito menos à sua beira esperaria durante longos momentos o retorno do eco que me diria um pedaço de verdade. A verdade do instante de mim só se poderia encontrar, agora, numa mais espessa longanimidade: num tempo que, embora ainda curto, se estende por mais do que um alarde; num tempo que, apesar de ligeiro, parece que chega tarde.
Olhando-me dessa maneira, com esse profundo desconhecimento em meio a um cipoal de descontentamento – de desconforto e auto-inimizade –, percebi-me incompleto. Percebi, e isso é mais e pior, um olhar incompleto. Entendi-me incapaz de encontrar nos olhares alheios lançados sobre mim quaisquer sinais de verdade. Descobri-me trancado na nuvem da inobservância, como se eu fosse um farol condenado a projetar durante o eterno sua luz sobre a escuridão do mar sem nunca quedar-se, por dentro, iluminado; como se fosse um farol, mas a tempestade corroesse não os rochedos, pois ela estava, em segredo, corroendo o meu teto, a minha lanterna, os meus degraus, os meus silêncios e, acima de tudo, os meus sinais. Era uma tormenta não de ondas, nem sequer saída das fossas abissais: ela existia em degredo, imponente brotando da minha carne – nascendo da própria terra como monolito negro feito inconcreto através da ascensão do penedo.
E, ao encontrar-me assim empedernido – enegrecido de granizo a turvar-me violento –, vi-me prostrado de dor, curvado ao relento. As gaivotas grasnavam alucinadas ao meu redor, o mato ralo balançava ao vento na beira da areia que, dura, esquecia seu intento, deixando gelar-se nas ondas do mar. Do alto do meu farol, vi a maresia que exalava de dentro oxidando o metal da minha edificação. Vi o furor da minha luz, repleta de escuridão, girando por sobre o mundo externo num turbilhão, buscando arrogante, defensiva e ardorosa postar-se segura em prosa numa longínqua nau desconhecida. E, horrorizado, vi-me enfim caracol em degraus descendo, saindo do meu orgulhoso sustento, deixando para trás a redoma de vidro que me quis criar. Pois aquela torre era um tormento, e sabia (graças aos anos de poesia) que a saída só poderia encontrar-se no fundo, depois da fuligem, do musgo, do adubo, num lugar onde a pedra se faz liquefeita.
Desci e vi, então, meus lençóis freáticos se agitando no subterrâneo de mim, conforme o meu falso conhecimento ia se enveredando por dentro das suas covas primais. As águas de terra úmida me soterravam, prendiam minha respiração – mas eu já as sabia apenas portais, um pedaço do caminho onde as dores purificam em rituais de dessagração. E fui nadando, navegando minha nau de draga, afundando nos confins do horror, sabendo que somente através dele me encontraria com a parca verdade que me chamava.
Avançando no extenso mergulho, cheguei enfim a uma caverna onde as estalactites do meu coração pingavam um longo e silencioso unguento. Meu peito tremia – brandia minha caixa torácica, fazendo soar como tambor até a minha pele debaixo das gotas que desciam uma a uma sobre meu ser. Era a água que escorria das minhas veias com a lentidão do tempo mais profundo, caindo sobre minha testa num ritmo de anunciação: primeiro zunia um zumbido grave, depois retumbava no distante oculto, e por fim voltava, quase imperceptível, vibrando nas mínimas ondas da fina bruma que cobria o chão. E pingava… pingava… pingava… pingava repleta de tempo. Corria cheia de esquecimento, dizendo que me sumia, que me fazia uma tênue linha por sobre o intento, e me prometia ser guia, criar-me outra via que escorreria por entre os caminhos da terra, traçando os veios da folha por mim. E eu ficaria repleto, silente e perplexo, no subterrâneo da minha emoção.
E houve, por um instante, um som de liberdade, audível como o mar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário