De onde olho o mundo,
Tudo às vezes parece turvo.
Esqueço quem sou - quem é a minha versão
Pujante e itinerante -
E fico na perdição de um outro Eu
Mais errante,
Menos enfático,
Mais estático e fatídico,
Um Eu quase mitológico
Que se sente fadado por feitiços antigos
Falados por deuses invisíveis,
Esquecido daquelas coisas mais humanas,
Da liberdade, da dignidade e da capacidade.
De repente sou só vícios,
Sou os resquícios do que sou,
Sou o que não sou -
O que deixei de ser quando me desencontrei
E no desencontro me recriei
Numa versão espelhada,
Disforme e contorcida;
Uma versão que não se recorda da sua vida,
Que se esquece da poesia
E mergulha em letras cansadas,
Num falar pela fala
Que jaz mecânica contra os lábios
E escapa num quase último suspiro.
Quero perguntar-me quem sou,
Sinto que devo questionar-me de novo -
Mas não porque agora me perdi,
E sim porque me roubaram.
Parece que o mundo me arrancou algo de coração,
Que me desejou caído na contramão,
Que me desdesejou
Até eu cair em degredo
Sem vontade nem potência.
Parece que meu livre pensar foi envolto
Pelas trevas de turvações alheias -
Parece que como abelhas eles me enxamam,
Me enchem de óleo e inflamam,
Para não restar no meu peito força para falar.
Uns me roubam as ganas por cima,
Outros me passam a rasteira
E alguns ainda se infiltram por dentro
E tentam de lá me carcomer vivo,
Feito parasitas que se declararam cheios de amor.
Meu corpo se inflama da peste obscura da desconvicção,
Carregada das várias fissuras
Que atentam contra a minha razão.
Quero crer haver saída,
Quero pensar no caminho que me livre,
Mas ele ainda está encoberto.
Por hora, resta-me o amortecimento
E a esperança de um amanhã incerto.