segunda-feira, 25 de maio de 2020

Talvez hoje eu deva falar sobre a chuva

Talvez hoje eu deva falar
Sobre a chuva
E seu cheiro de capim.
Talvez hoje eu deva cantar
Os floreios que ela melodia num lago,
Ou nas folhas, no asfalto,
No meu telhado
Ou em mim.
Talvez essa noite eu me deite
E ela ecoe constante
Pela minha janela aberta pro mundo.
Talvez amanhã eu acorde
E seu tom de lamúrio manhoso
Me convença a continuar
Mais um pouco
No banho de sonhos
Preparado pra mim.
Talvez ela me recorde
Do toque da terra úmida
E do fino suporte
De que me fiz;
E como me quis
Essa Terra, essa sorte
De ter me molhado,
Inspirado, amado
E sido feliz.

sábado, 23 de maio de 2020

Desencontro

(Zbigniew Preisner - Kai Kairos)

O que um se faz
Quando tudo que junto
Despeça em engano
Se visto o fundo de pano?
Que identidade assumo
Se cada insumo
Me materializa demais
E me sinto plano?
Quem sou?
Quem sou?!
Quem sou nesse fluxo
Que me propus?
Há um quem além da ilusão
Que o movimento vivifica?
O que fica de mim no espaço
Se nenhum pedaço reside resíduo
No tempo em que me desfaço?
E se sou movimento, que faço?
Que passo dou?
Que desenlaço me faz mais descalço
Pra sentir a areia derretendo no encalço
Do meu passar?
Como corro cheio de energia
E preservo meu tempo
Sem me emaranhar desse estranho engodo de vida
Que se parece fazer sempre premente
Em presente perpétuo
De um futuro avassalador
E um passado demasiado passado?
O que sou?!
O que sou além de vida
E o suspiro que dou
Cada instante
E o pensamento que vou
Inconstante
Avançando cambaleante
A um destino sem nó
Tão bem amarrado
Que quase é um estado
Em que me encontro
Desencontrado?

domingo, 17 de maio de 2020

Ouvi o silêncio do mundo

(Zbigniew Preisner - Officium)

Ouvi o silêncio do mundo
E ele ecoava em mim
Apesar de todo o barulho
Retumbando na carne,
Entre os ossos,
Como uma tempestade na catedral.
Ouvi o silêncio e ele estava impassível,
Inabalável no som -
Ele era a efígie do eterno
Esculpida na pedra perene.
Ele era eu
E não era.
Ele era
E não era.
Ele tremeluzia
Entrando e saindo da existência
Sem pronome nem verbo,
Linguaquefazia na minha voz,
Na mentecorpo que desfazia
Estirada rumo à compreensão.
A matéria jazia vazia
E tremia em desintegração.
Mas isso foi amanhã.
Hoje ainda havia
O conflito insuprimível da vida
Entre os sopros que agarro com o pulmão.