Quem sou eu? – eu me pergunto outra vez. Novamente me acho numa daquelas encruzilhadas – igual a tantas que outrora encontrei – nas quais reencontro uma verdade que me contara a meu respeito em vidas passadas – uma verdade que já não reconheço como verdadeira. Pouso meu olhar sobre o poço profundo que lateja no meu escuro e lanço sobre ele a minha declamação de mim, mas percebo que ele ecoa um som que me retorna num tom diferente – a mensagem que se desenha nas suas entrelinhas se encontra metamorfoseada, não correspondendo com exatidão às palavras que pronunciei. O poço me desengana – ele me confronta com o que digo ser a minha vontade, respondendo que “não: eis aqui a distorção escondida no canto que cantas, eis o que se oculta de ti na sala de espelhos que te construíste para preservar tua pretensa integridade – eis o que a água dos teus abismos, dos lençóis freáticos de ti, te retorna em ondas difusas, inexatas, incontidas. Tu já não és quem pensavas ser; tu quase nem és, ficção das ficções que é esse Eu com quem te contornas”.
Onde estou? – me pergunto desconhecido. Parece que sou outra vez recém-nascido; que me encontro perdido num mar de possibilidades, numa alcova de personagens disponíveis com suas vontades, crenças e manias que posso assumir à vontade, conforme a fase da lua que me embate e arrasta o meu véu de identidade pra lá e pra cá nas marés da verdade. É um desencontro que me fascina, me assusta e me excita. Parece que me libertei de quem acreditava ser e agora quero descobrir-me uma nova casca, uma nova camada de incompletude com que me direi ser Eu por um tempo, até que o próprio tempo outra vez me desnude e refaça. Mas quem é este que desejo ser agora? Que lugar é este que quero ocupar em mim para escorrer com as ondas que me remodelam? Que encostas são essas a que cheguei marejando, sem saber exatamente como, sob o comando desgarrado da lua cheia que me preenche com sua espessa escuridão?
Por muito tempo me cri moldado conforme os contornos de um amor de dunas – um amor fechado no circunspecto de um outro alguém, criado à sua imagem, fazendo-lhe o universo do real até a lonjura que o sol toca. Talvez porque vivi um tal amor no passado, cri-me procurando-o uma e outra vez no labirinto do mundo, tentando me desertificar nos recantos perdidos da Terra, em espaços aos quais não pertenci por inteiro por não me saber pertencer. Agora parece que me encontro enfim entendido dessa minha busca errônea, desse cambalear falseante com que me forçava a ser o que fui, sem querer aceitar que aquele Eu já passou. Hoje entendo… Entendo meus vícios, meus descaminhos e os crimes que cometi tentando me enganar. Enxergo a trilha de corações despedaçados que deixei para trás por não saber me desvencilhar desse amor antigo que quis tantas vezes em corpos distintos ressuscitar. E assim entendo melhor o que não sou – não mais, pelo menos. Entendo o que oferto e o que busco, compreendo o que não quero e aquilo que não posso oferecer.
E, se silencio o suficiente para interpretar o que agora ecoa no fundo de mim, descubro uma resposta que me diz: quero ser o meu desejo. O que reverbera em mim agora é o anseio de ser todo feito da matéria que compõe essa pulsão primal – essa fome que escondi de mim, esse ímpeto de vida que me neguei em nome de me controlar… De controlar o que me aterrorizava no meu desejar por sua liberdade indomável. Quero desmodelar meu amar, desfazê-lo da casca à qual o submeti acreditando fazê-lo melhor. Quero tirá-lo das dunas desérticas da ilusão prometida, do lugar de aconchego desassossegado que lhe incumbi, pensando-o como um dote a ser ofertado, colocado num coração exterior e ali derramado pelas Eras da minha fundição. Agora eu quero transfigurá-lo conforme a minha imagem, tornar as areias da sua ampulheta em ventos desgarrados; quero ser eu o seu cerne desachado, transitando nas cordas do fado que eu canto não por outro, mas pelo meu corpo de ar, pelo meu próprio sopro com que arrebento ora nos rochedos, ora na mata, ora nos oceanos e, por que não, também nos desertos. Quero soprar como tempestade e sussurro, escolhendo meu tom segundo o momento, fazendo meu canto como uma onda cuja entonação se desaloja do premeditado e subitamente reencontra sua nota num outro lugar.
Mas as minhas prisões ainda buscam me conter. Os meus erros antigos me perseguem querendo repetir-se, como se eu me recusasse a aceitar minha própria transformação, como se me agarrasse à segurança insegura do meu desamor e quisesse permanecer no deserto por toda a minha vida; porque, afinal, ali o céu já é suficientemente estrelado – e quem precisa conhecer outras constelações? Minto e ressinto, oculto e renego, faço-me um labirinto que encobre de mim e dos outros o amor que agora se-me faz mais verdadeiro. Entrego o que penso ser entrega e o resto omito, pensando escondê-lo até mesmo de mim.
E, no entanto, as minhas palavras lançadas ao vento já não me permitem me enganar. O meu poço reverbera, suas trevas ressoam como um canto gutural incontrolável e inconteste que brama contra as minhas mentiras a sua ressonância de nova verdade. Um novo amor clama por nascer dentro de mim; ele demanda espaço, me pede que aceite seu novo percalço, que me desenfeite dos ornamentos da minha devoção antiga e vista as roupas novas de oráculo em cujo sacerdócio ele faz oferendas que ainda me são misteriosas, suplicando bênçãos desconhecidas dos deuses em rituais secretos que, pouco a pouco, começam a se-me revelar. E eu – já bem entendido das oscilações do tempo, já reconhecido na mudança e desprendido das velhas crenças de Ser e me impor – simplesmente me rendo. Que venha a Era do vento com todos os seus erros, incertezas, descobertas e aconchegos.
Onde estou? – me pergunto desconhecido. Parece que sou outra vez recém-nascido; que me encontro perdido num mar de possibilidades, numa alcova de personagens disponíveis com suas vontades, crenças e manias que posso assumir à vontade, conforme a fase da lua que me embate e arrasta o meu véu de identidade pra lá e pra cá nas marés da verdade. É um desencontro que me fascina, me assusta e me excita. Parece que me libertei de quem acreditava ser e agora quero descobrir-me uma nova casca, uma nova camada de incompletude com que me direi ser Eu por um tempo, até que o próprio tempo outra vez me desnude e refaça. Mas quem é este que desejo ser agora? Que lugar é este que quero ocupar em mim para escorrer com as ondas que me remodelam? Que encostas são essas a que cheguei marejando, sem saber exatamente como, sob o comando desgarrado da lua cheia que me preenche com sua espessa escuridão?
Por muito tempo me cri moldado conforme os contornos de um amor de dunas – um amor fechado no circunspecto de um outro alguém, criado à sua imagem, fazendo-lhe o universo do real até a lonjura que o sol toca. Talvez porque vivi um tal amor no passado, cri-me procurando-o uma e outra vez no labirinto do mundo, tentando me desertificar nos recantos perdidos da Terra, em espaços aos quais não pertenci por inteiro por não me saber pertencer. Agora parece que me encontro enfim entendido dessa minha busca errônea, desse cambalear falseante com que me forçava a ser o que fui, sem querer aceitar que aquele Eu já passou. Hoje entendo… Entendo meus vícios, meus descaminhos e os crimes que cometi tentando me enganar. Enxergo a trilha de corações despedaçados que deixei para trás por não saber me desvencilhar desse amor antigo que quis tantas vezes em corpos distintos ressuscitar. E assim entendo melhor o que não sou – não mais, pelo menos. Entendo o que oferto e o que busco, compreendo o que não quero e aquilo que não posso oferecer.
E, se silencio o suficiente para interpretar o que agora ecoa no fundo de mim, descubro uma resposta que me diz: quero ser o meu desejo. O que reverbera em mim agora é o anseio de ser todo feito da matéria que compõe essa pulsão primal – essa fome que escondi de mim, esse ímpeto de vida que me neguei em nome de me controlar… De controlar o que me aterrorizava no meu desejar por sua liberdade indomável. Quero desmodelar meu amar, desfazê-lo da casca à qual o submeti acreditando fazê-lo melhor. Quero tirá-lo das dunas desérticas da ilusão prometida, do lugar de aconchego desassossegado que lhe incumbi, pensando-o como um dote a ser ofertado, colocado num coração exterior e ali derramado pelas Eras da minha fundição. Agora eu quero transfigurá-lo conforme a minha imagem, tornar as areias da sua ampulheta em ventos desgarrados; quero ser eu o seu cerne desachado, transitando nas cordas do fado que eu canto não por outro, mas pelo meu corpo de ar, pelo meu próprio sopro com que arrebento ora nos rochedos, ora na mata, ora nos oceanos e, por que não, também nos desertos. Quero soprar como tempestade e sussurro, escolhendo meu tom segundo o momento, fazendo meu canto como uma onda cuja entonação se desaloja do premeditado e subitamente reencontra sua nota num outro lugar.
Mas as minhas prisões ainda buscam me conter. Os meus erros antigos me perseguem querendo repetir-se, como se eu me recusasse a aceitar minha própria transformação, como se me agarrasse à segurança insegura do meu desamor e quisesse permanecer no deserto por toda a minha vida; porque, afinal, ali o céu já é suficientemente estrelado – e quem precisa conhecer outras constelações? Minto e ressinto, oculto e renego, faço-me um labirinto que encobre de mim e dos outros o amor que agora se-me faz mais verdadeiro. Entrego o que penso ser entrega e o resto omito, pensando escondê-lo até mesmo de mim.
E, no entanto, as minhas palavras lançadas ao vento já não me permitem me enganar. O meu poço reverbera, suas trevas ressoam como um canto gutural incontrolável e inconteste que brama contra as minhas mentiras a sua ressonância de nova verdade. Um novo amor clama por nascer dentro de mim; ele demanda espaço, me pede que aceite seu novo percalço, que me desenfeite dos ornamentos da minha devoção antiga e vista as roupas novas de oráculo em cujo sacerdócio ele faz oferendas que ainda me são misteriosas, suplicando bênçãos desconhecidas dos deuses em rituais secretos que, pouco a pouco, começam a se-me revelar. E eu – já bem entendido das oscilações do tempo, já reconhecido na mudança e desprendido das velhas crenças de Ser e me impor – simplesmente me rendo. Que venha a Era do vento com todos os seus erros, incertezas, descobertas e aconchegos.