sábado, 23 de fevereiro de 2019

Vazão

(Julia Jacklin - Comfort)

Deu vazão.
Não sei por quê, mas deu.
Subitamente me senti fragilizado
Como há tempos não sentia
E não entendi
Se foi o livro que lia,
A música que ouvia
Ou só o sino que zunia
No meu templo
Em um tom doloroso.
Há algumas simetrias dos sentidos
Que simplesmente acontecem
E sua perfeição dói de chorar.
Não há o que fazer
Quando os astros se alinham
E deixam o céu vazio
Para todo o conteúdo se concentrar
Num ponto ínfimo
Onde sobra cor
Enquanto o resto do firmamento
Se confina à imensidão de ser.
Às vezes a vazão vem
Simplesmente pela observação;
Mas também só de constatar
O céu já se reilumina
O suficiente para suspirar,
Engolir o nó,
Secar os olhos
E voltar a sorrir
Um sorriso frágil e molhado -
Transparente.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Ode

Te dou uma ode
Vazia de significado.
Dou simplesmente porque quis dar
- E na verdade não entendo bem como funciona uma ode -
Mas parece algo belo,
Trovadoresco e bucólico,
Então vá lá: uma ode.
Honestamente nem sei
Qual o meu sentimento por ti;
Mal sei o teu nome,
Mas sinto a fome dos poetas
Que, na falta de um amor pra chamar de seu,
Buscam devorar todas as estrelas
E descê-las com uma entornada de Via Láctea
Pra assentar as borboletas aflitas
No estômago e nos dedos.
Talvez, enfim, o sentimento que tenho
Seja sozinho -
Mas não desse jeito tenebroso que pensas:
A solidão dos que se gostam
E se deliciam no silêncio.
Talvez o coração não saiba falar desse amor
Sem terceirizar as estrofes
E precise, então, de um toque de alheio
Pra soar mais preciso.
Mas não me entenda mal!
Não sou um Narciso que terceirizo meu amor.
O que tenho é um caminho
Por onde me infiltro
Pra encontrar os espíritos
Que me dão sabor,
E essa rota escondida
Desemboca em palavras
Que abraçam tua dor.
A ode que canto, afinal,
Talvez seja só um afago:
O pão que trago pra repartir
Dizendo "te entendo
E portanto eis-me aqui
Travestido de cancioneiro velho
Pra te fazer sorrir".