segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Carne, Sangue e Espinho

Havia em mim
Um espinho
Que encravou fundo no seio
Entre o átrio esquerdo
E o pulmão.
Ele rasgou tanta carne
Que pensei-me por um tempo
Condenado à morte prematura
Por invasão de corpo estranho.
Mas meu coração
Bateu com força,
Fez jorrar o sangue vinho
Para dentro da fissão
E com ele a vida
Em matéria fibrosa,
Grossa
E vermelha.
Eu floresci no peito
Um botão de carne
Com pétalas respirantes
Expandindo e contraindo
Espinhentas e gloriosas
Para o mundo inteiro ver
E saber que vivo
De carne, sangue e espinho
Sem me retroceder.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Pensei que te amei

Pensei que te amei,
Mas...
Não sei.
Se não tivesse pensado,
Quem sabe houvesse desembestado
Nos trilhos que me carregariam
Direto ao lugar encantado
Da euforia.
Contudo, quiçá esse estado
Inconsciente que se presume elevado
Também não seja amor.
Talvez o simples fato de não ter certeza
Já devesse impor sua clareza
De "não, isto não é amar".
Mas daí recordo que quando me cri amante,
Também lá meu passado era errante -
Sem convicções ou confianças.
Pois que amar - talvez - tenha em si tatuado
O medo da entrega.
Ou assim se me alega.
E se amor for tão somente um filtro,
Um olhar
Que se carrega sobre o mundo
Quando se sente por ele tocado,
Então eu te amei
Mais do que nunca tivera amado.
No entanto o filtro se me há infiltrado
De tal maneira que vejo com frequência
As coisas por esse seu lado;
E amor, nesse caso, não seria um algo compartilhado.
Não sei!
Não sei mais o que é amar
No sentido analítico
Nem no versado.
Talvez o amor não exista -
Mas isso seria a declaração de morte do poeta;
E então qual seria o meu significado?

Diz-se que nalgum lugar distante nos montes
Existe um templo ao amor,
Inacessível e insólito entre as tempestades de neve.
Chegando lá, provavelmente não se encontram respostas
Nos seus pergaminhos empoeirados e apagados
Ou colunas silenciosas como o próprio tempo.
Mas se o templo existe,
Este simples fato comprova o amor.
Não?

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

O Oscar 2020: o que realmente significa a "internacionalização" do prêmio de Melhor Filme?

Fiquei bastante meditativo ontem à noite e hoje durante o dia depois da vitória do filme coreano Parasita nos prêmios Oscar de 2020, em especial na categoria de Melhor Filme, a mais importante da premiação. Temos uma tendência a nos emocionarmos com triunfos inesperados e surpreendentes, e o Oscar é um ambiente em que esse tipo de debate tem destaque especial. Todo ano nos deparamos com narrativas sobre a premiação e os rumos que a Academia cinematográfica norte-americana supostamente está tomando com base nos indicados e vencedores. Já tivemos o Oscar do “blockbuster versus o indie”, o Oscar da representatividade feminina, o Oscar da negritude, o Oscar LGBT e, cada vez mais, essas leituras vão se consolidando, ganhando destaque nas análises feitas por “especialistas” e por nós, a audiência da cerimônia. Para esta edição, já circula o discurso de que este foi o Oscar da “internacionalização”, simbolizado nas quatro estatuetas conquistadas pelo longa de Bong Joon-ho - o primeiro filme em língua não-inglesa a levar a principal estatueta da noite.
Não me entendam mal: essas leituras são importantes, e é claro que é fundamental conversarmos sobre representatividade nas esferas de poder. E não sejamos ingênuos: a indústria cultural de Hollywood É uma esfera de poder do capitalismo neoliberal neocolonial. Mas é exatamente aí que jaz o meu questionamento sobre a empolgação da noite de ontem. Até que ponto podemos falar em empoderamento e libertação dentro de uma indústria regida pela lógica de dominação cultural? Será que a venda dessa narrativa empoderadora na própria mídia não reflete alguma outra coisa também?
Sabemos que nos últimos anos a Academia norte-americana tem feito um esforço por inclusão e representatividade. Uma grande quantidade de membros jovens com uma variedade de bagagens culturais ingressou na instituição nos últimos três anos, e isso teve algum reflexo sobre os Oscars. Mas esse também foi um impacto muito mais modesto do que gostamos de admitir. Neste ano, apenas uma pessoa negra foi indicada nas principais categorias individuais da cerimônia (De direção e atuação, seja em papéis principais ou coadjuvantes). Na categoria de direção, nenhuma mulher. Essas discussões continuam sendo sintomáticas. O nível de comemoração que exibimos quando esse tipo de representação - que já deveria estar naturalizado - acontece mostra que na verdade ainda estamos muito longe de uma representatividade verdadeira.
Porém, outra ponto igualmente interessante a ser discutido na questão da representatividade da Academia é algo muito mais subjetivo do que aquilo que os dados revelam: o discurso por trás dessa representatividade. O que é frequentemente dito nesses meios e premiações é a importância de que todos tenham a mesma oportunidade de acesso. Mas oportunidade de acesso e acesso propriamente dito são coisas muito diferentes. Uma frase repetida inúmeras vezes é: não desista dos seus sonhos, continue lutando, continue trabalhando, continue tentando. Porém, o que esse tipo de pensamento esconde é que a dinâmica de poder continuará existindo: ainda haverá muitos que não terão acesso aos círculos centrais da indústria cultural para que alguns poucos o tenham. Supostamente os mais talentosos, mas sabemos que na verdade com muita frequência dentro do universo da televisão e do cinema quem “chega lá” é quem tem os melhores contatos. O pensamento do esforço - do “não desista que você será recompensado” - tem, na indústria cinematográfica, a mesma lógica perniciosa de ocultação das forças de dominação desenvolvidas pelo capital em todas as suas esferas.
A narrativa supostamente inclusiva do Oscar deste ano tem o mesmo tipo de problema. Sim, podemos ver a vitória de Parasita como um movimento inclusivo e internacionalista da Academia norte-americana, mas também podemos vê-la por outra ótica. Ao longo da última década, com a ascensão econômica da China e outras nações do leste asiático, temos observado uma guinada cultural em direção a um eixo mais orientalizado em detrimento da clássica dominação norte-americana. Os jovens e crianças de hoje foram criados com desenhos japoneses, assistem séries coreanas e filmes chineses. Há um novo pólo industrial em construção no mercado cinematográfico. As instituições de poder cultural norte-americanas precisam se adaptar a essa realidade. Será que o reconhecimento desse cinema é apenas uma condecoração dos méritos e da qualidade das produções orientais? Será que não existe aí uma jogada de poder, de assimilação dos novos pólos produtivos dentro da lógica de dominação cultural? Afinal, o Melhor Filme do ano pode ter sido coreano, mas quem lhe concedeu essa honra ainda é uma instituição norte-americana. Quais são as verdadeiras ramificações desse “reconhecimento”?
Eu gosto dos prêmios Oscar. Genuinamente. Mas não consigo evitar esse tipo de reflexão perante as narrativas midiáticas que dominam a discussão sobre o evento. Existem tantas outras premiações historicamente muito mais inclusivas, democráticas e internacionalizadas do que o Oscar. Aqui no Brasil, na cidade de São Paulo, temos todo ano a Mostra Internacional de Cinema, que traz longas e curtas maravilhosos de origens diversas para a metrópole. Ademais, os grandes festivais de cinema (Cannes, Veneza, Berlim, Toronto, etc) sempre foram muito mais orientados a uma lógica de integração e diálogo entre diferentes pólos de produção cinematográfica. Aliás, a Palma de Ouro de Cannes foi concedida em 2019 ao mesmo Parasita, assim como aconteceu inúmeras vezes com outros filmes asiáticos (para ficar só na última década, o japonês “Assunto de Família” venceu em 2018, o turco “Sono de Inverno” em 2014 e o maravilhoso tailandês “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” em 2010). O cinema oriental sempre foi incrível - vide a quantidade de diretores geniais que esse hemisfério já produziu: Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Zhang Yimou, Wong Kar-Wai e Park Chang-wook, dentre tantos outros. Não é o reconhecimento do Oscar que torna esses mestres cinematográficos dignos da nossa atenção. É importante lembrarmos o caráter institucional e, especialmente, industrial da Academia norte-americana quando pensamos suas supostas ações de inclusão, justamente para que possamos nos questionar: que tipo de integração é essa? Quais os interesses e as verdadeiras consequências por trás dela?

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Elo

Elo é
A única
Que linca
As verdades de toda vida.
Elo lua
Tão pingente no universo
Perolada no nada
Azulada
Da melancolia velha
Que dá liga
Na solidão.
Ele nega,
Ela renega,
Mas elo se me entrega
Em corrente no pescoço,
O medalhão circular
Que sou meu lar.
E pulso avulso
As lágrimas de cobre
Banhadas em ouro -
Ninguém mais me é
Tão destructo e inconcreto
E repleto de olhos
Brilhando na galáxia
Reconexos de breu,
Reconvexos de Eu.