segunda-feira, 27 de abril de 2020

A Visão

Eu vejo
E mergulho
Consciente do tanto sobre que sou inconsciente;
Consciente do escuro
E da pequenez
Da minha luz
Opaca
Oculta
Entre os monstros
No breu da imensidão.
Eu vejo e escolho com tudo
Que me define e redime e completa
Incompleto
Com toda a minha parca razão -
Eu escolho o mundo
E o amor
E a vida,
O que quer seja
Isso que eu veja:
Eu escolho os conceitos profundos do escuro
E a luz da minha visão.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

O Sonho

Em meus sonhos
Eu sou múltiplo.
Por vezes ator,
Noutras autor,
Sirvo de audiência
E até diretor.
Às vezes me vejo ali, externado,
Como se multiplicado entre a ação
E o observador;
Eu julgo as vias que aquele outro que sou
Opta por tomar,
E então de repente o eu que assiste
Se move
E entra no jogo para me salvar
- O pequeno eu da narração -
Como se não houvesse dilema
Entre os meus não-finitos pólos de participação.
Em meus sonhos eu sou quem quero,
Eu sou o que sou,
Sou o que vejo e quem vê,
Sou resultado da gama complexa de dissertações
Que o eu se propôs.

Nada mais adequado.

Eu, afinal,
Sou olhar
Sou agência
E afeto,
Sou de me julgar
E salvar
E agir sem saber como a história que sou me moldou
À imagem de um eu
Cujo único nexo
É o sonho.

domingo, 5 de abril de 2020

Anunciação

(Zbigniew Preisner - Lacrimosa (Day of Tears))

Falta controle
Às minhas mãos.
Falta a linha fina
De vazão da mente
Em direção a um rumo,
Seja qual for;
Um desenho de letras conformes,
Unidas e claras -
Pois estou só carne
Na putrefação dos seus processos;
Estou só alarme -
Os vícios do circuito em sítio,
Os nervos em puro pulso,
Em descarga frenética
Fora de mim:
Hoje sou outra coisa
Que não o que me inventei.
Hoje sou aquele outro,
Que se-me engano
E me distancio,
Externando um ser
Que se-me ojeriza
E desconecta os meus fios
Até a dismorfia onde não reconheço
O eu que ocupa o corpo.
Conheço este que sou.
Já o fui outras vezes -
Temi seus pensamentos,
Tremi frente aos seus corrimentos
Que formigavam nas veias
Num revertério de si.
Conheço a forma que se-me veste por dentro
De avesso e remorso
E oposto ao lastro
Que o outro eu
(Aquele que me reforço
E me narro mesmo agora,
Quando seu domínio me falha)
Se-me confinou -
Um confino de agrado
Que neste momento está esfarelado em lembrança,
Amarrado num hemisfério oculto
Dentro do cérebro desregulado.
Falta a narrativa da química balanceada:
A minha história está mal-temperada;
As dobras do cerebelo estão cheirando a mal-passado
Em conserva de sal e ervas podres.
Sobe o odor de trauma
Misturado num inconsciente de ódio
E pulsão vernacular.
Sobe a monção úmida
De um corpo fedendo a ovo do lado de dentro,
De tripas tortas e dentes escuros
No âmbito psíquico.
Queda gritante no gutural
O vazio fático;
Queima furioso o conhecimento do mundo,
Purificado pelo enigmático do irracional;
Ferve em mim o desespero de vida,
O apego ao próprio processo de fervilha
E o amor ateu,
Este único amor possível
Pois removido de ilusões
E convencido de suas razões,
Mirando o fim de tudo direto nos olhos
- Seus olhos escuros de nada -
E agarrando fundo nas unhas
O dessentido da existência
E sua filosofia resoluta.
Eu-convertido-em-monstro
Possuo a chave
Do eu-glorificado.
O falso deus te há enganado
Invertendo os fatos:
Na verdade os anjos
São demônios revigorados
Depois de no inferno terem derretido.
Eu sou a fonte de tudo,
Sou a raiz da vida,
Da crença
E do próprio mundo;
Eu, nas entranhas do fogo,
Forjei o espírito puro
Dos homens
Das eras
De mim.
Eu, em estado carmim,
Sou a terra roxa
Que embebe de vida a semente
Que germina e morre,
Germina e morre
E novamente germinará
Num caule severo e belo,
Firme em estirpes profundas
Como vermes gigantes nas entranhas do chão;
Germinará em galhos abundantes
Cobrindo a terra na sombra
De folhas repletas de seiva
Que escorrerá feito cera de suas frontes verdes
E de tão profícua pingará sobre o solo
Fecundando-o de vida
- A minha vida -
E seu cheiro distinto de Anunciação:
Eis-me aqui, revelado e enlevado nas trevas,
Tocando as nuvens com asas negras de pó.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

ENSIDESFIM

Eu queria esquecer
A minha humanidade
Pra, quem sabe,
Transcender
Numa acuidade de consciência
Que me desobrigasse do fático
Da carne.
Mas
Não tem jeito:
Estou preso aqui;
Estou preso a mim
E a este tempo,
A esta vida
Que se faz tão existente
Que beira o intragável de ser.
Viver é uma facticidade
Latentemente exagerada
E inconstante
E mal-dosada
E pujante
E condenada a um em-si
Que ensimesmado
Sabe nada
E não sabendo
Sobra-se
Por sobre as sobras
Que a sapiência
Quis que não tivessem se.
Eu estou enviesado
Numa vida inevitável -
Num horror inescapável -
Num social inesgotável -
Que no fim não finda -
Emsidesfim da vida em mim!