terça-feira, 29 de setembro de 2020

Intempério

Hoje o tempo me tomou
Com seu fluxo completo
E eu nada pude
E quedei a perplexo aceder
Que ele me devorava
E meus enganos de controle
Esvaziava
Enquanto vazava ao redor
A textura que me escapava
E eu só olhava
Olhava
E olhava
E passava ele n'eu
Eu nele nada
Nadava o tempo
Na minha carne de água
E eu sorria
Pois que do falso tempo
Ele me libertava
E agora eu sabia
E mais nada.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

As Águas Profundas do Silêncio da Alma

Você devia parar
Com essa mania de esgueirar suas mãos
Debaixo do meu travesseiro
Mergulhando os dedos no meu cabelo
Por sob minha pele
E através do cerebelo
Pra tocar meu núcleo almoso
E, com seu roçado dengoso e discreto,
Se infiltrar nos meus sonhos.
Devia parar
De alcançar-me daí
Da sua margem do lago
Com seus braços sinuosos,
Seus rios de abraço
Me engolfando em remanso
E assoprando as conchinhas
No leito do ouvido
Pra me marejar ondulado
E me navegar balançado
À luz dos espíritos noturnos.
Devia parar de me encontrar
Quando estou desarmado
Das minhas razões
E noções de cuidado,
Quando teus dedos fazem mais estrago
Arranhando o tecido do meu lado sensível
E logo curando o machucado
Com o toque macio do teu úmido lábio.
Eis aqui, outra vez, o meu lado inerte
Guiando o translado
Encontrando em você
Algum significado
Perdido nas covas profundas
Dos meus naufrágios.

sábado, 26 de setembro de 2020

O Zumbido

Sinto saudade de quem nunca fui.
Noto um desafino tinindo agudo
Na antecâmara esquerda do peito,
Vibrando na catedral de mim por inteiro
Um lamento de idades passadas
Ou terras distantes
Ou casas vizinhas,
De campos por arar estendidos longânimes debaixo do sol,
De vigílias por guardar em muralhas fronteiriças no luar,
De enganos por me contar na correria paulistana,
De monastérios onde me consagrar a votos de silêncio
E ruas onde me lançar de novo a andanças desencontradas.
Sou como a cigarra
Zumbindo encantada na madrugada
Lembranças que ficaram por cantar
Sem consciência do que canta
Porque a vida é serenata
Em todo canto dessa Terra
Sem se ter por que cantar;
Sem a quem, sem nada mais por encontrar.
A vida contemporânea é o desengano do encontro:
Quando enfim localizada
Quer perder-se num canto diferente,
Pois que aqui
- Como em outro qualquer canto -
É mui difícil de cantar.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Toda ilha é um homem

 "Nenhum homem é uma ilha", eles dizem. Mas
Toda ilha é um homem.
Coberta de espessa penugem
Ela respira pesadamente
Afastando o mar no seu trago arfante
E mergulhando nele ao expirar.
Ela recita pra si as lembranças do dia:
Duas xícaras que fumegaram nuvens no céu
Zarpando entre aqui e acolá
E um corcel que relinchou indomável
Debaixo do oceano, mas
Fora isso
Nada de muito importante.
Toda ilha é cantante
Debaixo do silêncio grosso
Que corre no vento da selva
Carregando um estranho alvoroço
De espíritos selvagens e cigarras incessantes
A incendiar um hino exultante
De mata ciliar sitiada.
Toda ilha é uma fome danada;
Um anseio da coisa talhada
Da farpa arrancada
Da veia rasgada
Da mata torrada de um sol que não se põe por nada -
Por que esse sol não se cala?!
Por que não me para
Em noite amenizada
Num jorro de brisa que esfria no calor do ventre
Guturalizada?
Toda ilha navega, mas
Sua navegação indigente
Parece ao olhar inocente
Ilhada.