Dia desses me lembrei de quando te amava. Mas a lembrança foi estranha… Ela me veio com uma anômala ausência de sentimento – veio com um olhar distante (quase poderia chamá-lo de distanciamento), frio e analítico, daqueles olhares obtusos que lançamos no estudo superficial da História no colégio, quando desconhecemos a realidade vivenciada dos acontecimentos e lemos desinteressadamente um relato vago e questionável dos fatos. Veio, não por acaso, numa instância em que narrava os eventos de minha vida despretensiosamente a terceiros semi-interessados. Contava um causo contigo como se fosse um evento engraçado, uma mágoa passada já hoje esquecida e apagada, um resquício de uma vida que vivi há muitas eras, quando eu era um pirata, um tabelião, quem sabe uma marmota ou até mesmo um fungo agarrado a uma pedra esma na beira do mar. Senti-me por um instante como aqueles velhos marinheiros dos filmes, que narram aventuras de juventude e epopéias longínquas entre uma e outra garrafa de rum numa taverna mal iluminada com velas antigas – candeias tão velhas que completamente enrugadas de toda a cera que verteram chorosas sobre si mesmas – em meio a um cenário que se pretende enigmático e perigoso, repleto de rostos estranhos e goteiras que deixam vazar através do teto de madeira decrépito um ínfimo resquício da tempestade cujo som estremece num ribombo discreto as janelas, insinuando com gravidade o vendaval que agita o mundo lá fora.
Mas esse sentimento cinematográfico durou mesmo apenas um instante. Veio e se foi num átimo, no tempo que me levou para perceber, com a frieza distante que agora cobria o meu olhar, o tamanho do machucado que havia se escondido debaixo do meu amor por você todo esse tempo. Chocou-me a descoberta. Vi, com espanto, que não havia na história que contava despretensiosamente nada de belo, nada de gracioso. Aquelas palavras tantas vezes repetidas com ar tragicômico, de quem recorda para se apagar, de repente não tinham nenhuma lisura com que eu pudesse encobrir de mim o horror que latejava nelas. Os anos me tiraram os recantos de negação onde eu me embrenhava ardiloso para me negar em nome de te amar. Subitamente vi meu eu passado como uma pobre minhoca – uma vida anelídea cega e viscosa mergulhada nas trevas da terra, comendo merda e acreditando que ali era o seu lugar. Vi-me – pior – uma lagarta que se acreditava minhoca, sem saber como me alimentar apropriadamente ou sequer ter noção da importância de me autogerminar em casulo. Vi-me e tive vergonha. Vergonha… Mas compaixão.
Compaixão por mim, agora – excêntrica novidade. Compaixão por aquela jovem alma que acreditava no amor como fundamento e o teve arrancado sem misericórdia; pelo meu espírito traumatizado, cuja dor latejara tão fundo que já nem se parecia com dor – soava mais como um distante esquecimento de mim, uma desmemória do meu corpo que se anestesiara com nada para nada mais sentir; compaixão por aquela pequena lagarta que não imaginava que pudesse ser qualquer outra coisa que não comedora de terra.
Esse novo sentimento me calou subitamente. Aquela história, contada daquela maneira, já não era minha. Não fazia mais sentido saírem da minha boca aquelas palavras perdidas de uma identidade que jazia vertida como vinho avinagrado sobre o chão. Aquele teatro era como uma fruta podre que continuava agarrada a mim, o receptáculo de uma velha mentira que enfim estava madura o suficiente para cair. Senti então a dor pungente que não sentira por todo esse tempo, que permanecera escondida na minha enganação – a estranha dor de um caule saudável que percebe o instante em que um fruto estragado se desprende num estalo; de um galho que, num átimo, passa a balançar mais leve e respira com flexibilidade, esticando os seus ramos em direção ao sol; a dor de um broto que escuta, ainda na sua inexistência, a imensidão da existência prometida, da ardente potencialidade que se abre no novo caminho que se-lhe permite desabrochar.
Não sei por que te escrevo essas palavras. Talvez busque com elas provar para mim mesmo que tua ausência estancou em mim. Mas parece haver nessa atitude também a percepção de que, com essa estanca, também perdi toda uma alegoria de vivências possíveis que parecem ter desaparecido por completo do meu ser. O amor em mim se tornou uma coisa do passado. Sinto, sim, a possibilidade de um desabrochar que promete me encaminhar para outras realidades, mas nelas todas ainda parece correr obscuro um sangue preto – frio e viscoso – num canal encravado oculto na encosta da minha jornada. Parece ainda me faltar alguma coisa que esqueci, algo que perdi com você. Ou talvez isso seja te dar poder demasiado – talvez a estanca seja muito mais antiga…
Sim! Vejo num relance de minha infância aquela corrente discreta se arrastando pegajosa por entre o verde do jardim. Vejo as marcas de graxa que ela deixa em seu caminho, o traçado de preto que ela abandona no seu passo, como uma serpente mortuária marcando os limites de um contorno que se quis afirmar meu. Vejo o molde que buscou me desenhar uma identidade fixa, como que resguardado num feitiço que me impus como proteção contra as magias negras que rodeavam meu mundo. Vejo meu pequeno coração sendo alimentado com aquele sangue preto, sem saber que, antes que ele pudesse sequer compreender, o haviam transfusionado um veneno amargo com que o enganaram, uma gosma daninha repleta de ódio a que deram o nome de amor. Vejo, mais além, a mata cerrada cheia de olhos amarelos a me mirar por entre as trevas, seus dentes caninos expostos a derramarem saliva ácida sobre as folhas que instantaneamente acobreiam e derretem, vertendo-se em cinzas sobre a grama queimada. Vejo como a serpente supostamente me protegeria com seu tracejar venenoso e entendo o feitiço que me lancei, ignorando a dor. Mas ele hoje me parece insuficiente. Parece mais uma prisão que uma proteção, embora confesse que, mesmo agora entre essas palavras, ainda me flagro de alguma forma estranhamente apegado à minha cela.
Creio que te escrevo por seres um passado mais fácil para encarar. De ti os traumas já haviam sido – a essa altura – quiçá resolvidos. Parece-me bom relembrá-los, sabê-los traumas e não deixar sua memória desaparecer por inteiro na sombra do passado, mas dentro deles parece ser preciso encontrar outros fantasmas que precisam ser enfrentados, outros demônios escondidos que guardam hábitos pútridos na minha memória muscular. E parece que consegui visitar, por intermédio das dores esquecidas de ti, outros infernos que não posso chamar de teus – sofrimentos impostos, por um lado, pelos (ditos) amores mais arcaicos da minha gênese e, por outro, pela minha própria tentativa de desfazê-los quando ainda não sabia sequer desatar nós. Parece que há outros eus ainda mais antigos pelos quais preciso derramar mais misericórdia e perdão. O processo não acaba aqui, contigo.
O que essa nova carta a ti me diz é que talvez eu possa ainda amar, quem sabe enfim um dia desencerrando em mim essa estanca velha e desatinando o coração em novas sangrias. Talvez ainda não totalmente – há, com certeza, muitos percalços que continuam escondidos entre as minhas palavras, muitos frutos podres acobertados pela densidade da minha ramagem. Mas, sem dúvida, amar mais – ao menos um pouco mais. Meu amor parece ter desamarrado mais um percalço, desatado mais essas cordas emboloradas e esfareladas que o continham e agora quase começa a se crer livre. Sinto nas minhas palavras uma leveza que há tempos não sentia. Sinto algo como uma sensação de infância nova, como se visse derreterem no meu jardim as viscosidades obscuras; como se estivesse aos poucos me desafeiçoando dos antigos laços e já me sentisse purificado o suficiente para sair à rua, correr em direção à lua e derreter sob o sol. Os olhos lúgubres da selva vão lentamente se fechando num sono milenar e ouço, ao longe, o chamado de uma nova corrente translúcida que parece abrir caminho em meio à mata, correndo não mais em círculos, mas num serpenteio vivo através do arvoredo. É estranho, mas quase acredito que ouço nela a minha própria voz, como um feitiço espelhado com o qual me convido para um novo aconchego.
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