sexta-feira, 20 de julho de 2012

Carta psicossomática

Gostaria de deixar aqui abertas, registradas, as minhas loucuras; as pequenas obsessões que se aprofundam como um câncer ao ponto de tomarem todo o corpo em sua gangrena pulsante, veia que geme solitária rente à garganta avisando aguçada faltar ar, mas sem tê-lo com certeza. Dizer, talvez, como a carta de Märta a Tomas - toda sua úlcera a cheirar pela boca, sincera e atônita, e no entanto contrita. Carta para o futuro, quiçá, feito memórias coloquiais trespassadas pela aberração do tempo, que como adaga perfura o coração para fincá-lo ao presente e apresentá-lo outrora a si mesmo, com ar inerrante e remissivo sobre o passado.
Deveria, então, deixar espaço para que o corpóreo convertesse-se em alma, como manda a formalidade das correspondências, mesmo que à própria velhice, crendo com isso acalantar um bocado da mente que assume a irresponsabilidade de categorizar a carne em mais de uma parte. Não se preocupe, caro leitor, se não o compreendes - a essa altura nem mesmo a minha consciência encontra disposição para confabular sobre suas ramificações. Mas sejamos findos com este engodo, que me incomoda.
Prefiro falar dos incômodos mais à flor da pele, que não se discreteiam entre pigarros e goles d'água. Estão mais próximos das loucuras, e são mais difíceis de discorrer que as bobagens da alma, mas não cedem a descritivismos fatídicos de sintomas escárnios. Isso porque, parece-me, numa análise psico-qualquer-coisa, vêm das superficialidades, mergulham às entranhas e, como cadáver de um afogamento, retornam aos músculos maculando-os de neuras e personalidade.
Já não quero mais falar. Não sei, dissecar-se a mente tão fria e metodicamente, saltando as vistas grossas com que as loucuras se olham, desapaixona o assunto. Fica sôfrego olhar-se, ver esse apanhado de pele gorda e espasmos reumáticos, e ficar quieto, quanto mais satisfeito. Viver definitivamente não é uma arte auto-contemplativa - requer fixação com as coisas externas, que por lá não nos identificamos e fica mais fácil amar. Claro que sem querer nos achamos pedaços pelo caminho, mas são ossos do ofício e, afinal, gente parecida conosco é em geral mais impressão do que realidade.
Nisso, então, há algum interesse: saber que entre as podridões nossas há os vossos perfumes para ajeitar; também que deve vir do profundo, de algures, das nossas carcaças um incenso suave para refrescar, ou não se poderia nos amar. Talvez o cheiro do corpo seja afável, mas de si não se sabe. O corpo, pois, não nasceu para ser sozinho.
Melhor acabar enquanto a conclusão é bonita.

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