sábado, 21 de julho de 2012

Jornalismo... científico?

O conteúdo científico é, infelizmente, algo de difícil acesso em nossos tempos. Fora o isolamento de que padece a maior parte da sociedade quanto a pesquisas científicas, geralmente segregadas em publicações a que apenas os profissionais têm acesso no universo acadêmico, há o inevitável obstáculo da capitalização da informação. Isso significa que boas revistas de jornalismo científico só estão disponíveis aos que têm como pagar por elas.
Daí para frente o conhecimento é filtrado, no sentido pejorativo, em inúmeras instâncias antes de se tornar tão difundido quanto possível. Talvez o nível mais tradicional a que tal fenômeno ocorre seja o dos portais de informação online, em especial aqueles de grande circulação. É frequente a simplificação, ou mesmo subversão, de trabalhos sérios por leituras míopes de escritores que não estão preparados (ou dispostos) para lidar com as nuances técnicas da linguagem de determinadas ciências, muitas vezes exacerbando sensacionalismos para gerar audiência.
Tópicos polêmicos são as vítimas mais fáceis. Foi o caso com que me deparei ao procurar saber mais sobre o estudo de John Donuhue e Steven D. Levitt sobre a correlação, nos Estados Unidos, da queda nas taxas de homicídio a partir do final da década de 1980 e a descriminalização do aborto em 1973 (ou em 1970, no caso de alguns estados federados). Este é o link para o artigo completo; estes, a seguir, são dois "resumos" com que me deparei na internet - o primeiro é um trecho do livro Evidências Científicas Sobre o Desarmamento, de Marcos Rolim, e o segundo é da coluna de Gilberto Dimenstein, correspondente da Folha de São Paulo. Recomendo a leitura, pelo menos, dos dois últimos textos, que serão o foco de minhas divagações.
Em poucas palavras, o estudo propõe que a descriminalização do aborto pela Suprema Corte americana em 1973 com o julgamento do caso Roe v. Wade teve ligação direta com a queda dos homicídios em meados da década de 1990, quando as primeiras crianças nascidas após a decisão chegaram ao fim da adolescência, faixa etária na qual as mortes por homicídio tendem a aumentar.
Deixando de lado a questão da efetividade das conclusões alcançadas pelos autores do estudo, é curioso como somos apresentados ao trabalho de maneiras quase diametralmente opostas pelas duas versões mais curtas - do livro e da coluna jornalística. Enquanto Dimenstein diz que o trabalho discorre a relação entre a escolaridade, idade e classe social da mãe e um consequente "ambiente propenso à delinquência" do filho, Rolim dá a entender que tal "propensão" tem a ver, na verdade, com a criança ser indesejada. De acordo com Donohue e Levitt, a correlação com o "status" social da mãe diz respeito ao maior controle que o aborto permite à mulher sobre seu planejamento familiar, o que significa ter filhos quando acredita que sua situação econômica, acadêmica e social está mais adequada, não simplesmente que mães pobres têm filhos delinquentes - há uma diferença sutil, de dinamismo, entre as duas perspectivas.
Dimenstein, em seguida, parte para um ponto ainda mais controverso, dizendo que "Donohue e Levitt sustentam que jovens não brancos tendem a ser delinquentes". Rolim, por outro lado, afirma: "a incidência do fenômeno é mais comum entre setores mais desfavorecidos e marginalizados da sociedade". Se levarmos em consideração a exclusão típica que sofrem os não brancos nos Estados Unidos (e, como um todo, na civilização Ocidental), fica fácil compreender que estes não "tendem" à delinquência, mas estão mais suscetíveis a ela justamente por serem marginalizados.
Não deixa de ser perigoso cair em discursos higienistas, ou eugenistas, quando pensamos as condições de diferentes classes ou etnias dentro de uma mesma sociedade, contudo não parece ser este o caso. Muito pelo contrário, os autores parecem preocupados em evitar isso, ainda mais por já estarem tratando de assuntos potencialmente problemáticos em termos de percepção pública, como aborto e política criminal.
Claro que relacionar esses dois assuntos é um movimento arriscado, mas para desqualificar tal comparação, tanto quanto qualquer outra, é preciso um grande aprofundamento na questão - algo de que carece um segmento do jornalismo não-científico quando se trata de difundir estudos aos quais boa parte da população não tem acesso. É preciso muito cuidado, afinal estes veículos tornam-se verdadeiros formadores de opinião, que podem inclusive prejudicar a divulgação do conhecimento técnico de ponta.

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