A história é a seguinte: um jovem foi desnudado e acorrentado, com uma trava de bicicleta, a um poste no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Especula-se (apesar de não haverem provas, já que nenhuma vítima ou testemunha apresentou-se à Justiça para denunciar o fato) que o rapaz foi pego roubando na rua Rui Barbosa, perto dali. Ademais, é possível que o ato seja obra de um grupo local organizado com a clara intenção de promover essas humilhações em praça pública contra trombadinhas na região, já que foi registrado um caso similar recentemente numa praia da zona sul do Rio. Vale ressaltar, também, que na foto divulgada nas redes sociais, o rapaz aparece com uma orelha machucada - aparentemente um ferimento recente, o que leva a crer que foi perpetrado no decorrer de seu "cárcere" ou imediatamente antes.
Daí vem a âncora do Jornal do SBT, Rachel Sheherazade, afirmar que "a atitude dos 'vingadores' é até compreensível", no que ela chama de "legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite". Termina lançando uma campanha direcionada aos defensores dos direitos humanos que "se apiedaram do marginalzinho no poste": "faça um favor ao Brasil. Adote um bandido". Depois, em sua conta no Twitter, defendeu suas declarações na televisão citando o artigo 301 do Código de Processo Penal brasileiro, segundo o qual "qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito".
Pois bem.
Vamos "ignorar" a explícita semelhança entre as imagens do rapaz negro acorrentado nu a um poste e os famosos pelourinhos do Brasil de outrora, onde escravos rebeldes, dentre outros indivíduos postos às margens da sociedade, eram expostos em praça pública com o claro intuito de humilhá-los perante a sociedade. Vamos "esquecer" também a lembrança dos linchamentos, surgidos no século XIX nos Estados Unidos, e que também aconteciam no Brasil, cujo principal alvo, a partir do fim da Guerra Civil Americana, era a população negra, e que se davam com frequência sem que houvesse qualquer "causa instigatória" por trás desses assassinatos. Para dizer em claro e bom tom, sem que suas vítimas tivessem cometido qualquer crime.
Vamos "apagar", enfim, esse histórico de violência contra os afro-americanos (América em seu sentido lato, de continente) que sempre esteve intimamente ligado à exposição de seus corpos em praça pública, seja com ou sem vida, como forma de humilhação e subjugação. Não é conveniente sermos lembrados do racismo subjacente à desigualdade social e a violência do nosso país. Então depois desse breve exercício de esquecimento, atenhamo-nos apenas ao que o "cidadão de bem" diz estar familiarizado: a Lei e a justiça.
Fico me perguntando o que aconteceu com aquela velha Rachel Sheherazade. Aquela, de muito tempo, que dizia que Lei é Lei, e deve ser cumprida. Aquela de... Sete dias atrás. Não que eu concorde de todo com a opinião dela sobre a decisão do juiz que considerou a maconha uma droga recreativa, mas é interessante ver como uma formadora de opinião de um grande veículo de comunicação pode mudar de ideia tão rapidamente, dependendo da circunstância. É uma curiosa coincidência, também, que para um traficante "lei é lei", enquanto que para os "cidadãos de bem" envolvidos no caso do rapaz acorrentado seja possível abrir uma exceção, com o conceito absurdo de "legítima defesa coletiva", que mais parece termo jurídico, chique, para descrever um linchamento. Desculpem-me, falei dos linchamentos de novo - às vezes é difícil esquecer. Mas como não lembrar deles quando contemplado com uma multidão que "faz justiça com as próprias mãos", seja lá a que valores essa tal justiça responde? Afinal, justiça para uns pode ser injustiça para outros. Ou os linchadores de negros de meados do século XX não acreditavam estar fazendo justiça ao livrarem seu país do que eles consideravam "raças inferiores"? E a segurança jurídica, dona Sheherazade? É justo, portanto, que organizações do tráfico realizem o "policiamento" de periferias onde o poder da Lei não chega, como acontece em alguns lugares do Brasil? Rachel navega por águas perigosas com esse seu conceito propositalmente vago de legítima defesa coletiva.
Como ela se defende? Citando o Código de Processo Penal, é claro (aqui a Lei volta a valer). "Qualquer do povo poderá (...) prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito". Perfeitamente. Mas se Sheherazade fosse um pouco além em suas leituras da legislação brasileira, veria que meros sete artigos depois (no 308 do mesmo CCP) a lei exige que "não havendo autoridade no lugar em que se tiver efetuado a prisão, o preso será logo apresentado à do lugar mais próximo". De acordo com o próprio indivíduo que publicou a foto nas redes sociais, o rapaz foi deixado acorrentado, nu, ao poste por uma hora. Isso até que uma moradora da região chamasse os bombeiros para tirarem-no daquela situação. Não chamaram a polícia para levarem-no à delegacia. Suas supostas vítimas não se apresentaram para prestar queixa. Ele simplesmente foi abandonado, depois de ter sido desnudado e provavelmente ferido - não há qualquer sinal de isso foi uma prisão em flagrante, apenas uma forma de humilhação.
Rachel também diz que o rapaz fugiu do lugar ao invés de prestar queixa contra seus agressores, como se isso, de alguma forma, justificasse a ação destes. Um crime não compensa o outro - vingança, mesmo que exercida no espírito de multidão (aliás, principalmente nesse contexto), não é justiça. Por mais que a Justiça falhe frequentemente (e não nego que seja esse o caso no Brasil), isso não é desculpa para abandonarmos o Devido Processo Legal. Devemos analisar as causas por trás da dificuldade do Judiciário em cumprir sua função e buscar soluções para isso. Esse processo passa necessariamente pelo controle dos índices de criminalidade, que por sua vez tem relação direta com a melhoria das condições dos presídios e a reinserção dos condenados na sociedade, ao invés de sua marginalização ainda mais intensa, e da profunda crise humanitária que se observa nos presídios brasileiros. Como ressaltou Matheus Pichonelli em sua coluna online na Carta Capital, a cada dois dias um presidiário é morto de forma violenta no Brasil.
Enquanto a situação de nossos presídios continuar precária como está, os índices de reincidência provavelmente não cairão dos 70% em que se encontram atualmente. Lidar com essa questão é apenas uma das formas de abordar o problema da violência, é claro, mas é um fronte no qual já poderíamos estar apresentando resultados, se houvesse maior interesse tanto das autoridades quanto da população. Estou ressaltando esse ponto apenas para demonstrar como os defensores de direitos humanos, que Sheherazade ama odiar, também estão preocupados com a redução da criminalidade. Muitas vezes, afinal de contas, são os próprios envolvidos com atividades ilícitas as principais vítimas da violência, como demonstram levantamentos que indicam que o número de homicídios entre jovens subiu em 2013, especialmente nos chamados "polos de concentração de mortes", que envolvem, entre outras áreas, aquelas com domínio territorial de quadrilhas, milícias ou de tráfico de drogas.
A preocupação dos defensores de direitos humanos, no caso dos presidiários, é principalmente essa: a reinserção social, tanto para melhorar a qualidade de vida dos indivíduos diretamente envolvidos com atividades criminosas, quanto para, consequentemente, melhorar a convivência em sociedade. Não são apenas eles, portanto, que devem "adotar um bandido", no sentido de facilitar sua reintegração. Somos nós, a sociedade, que devemos. Se você não quiser fazê-lo por um esforço humanitário, faça-o pelo menos pensando no bem futuro da sua (e da nossa) comunidade.
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