quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Ímpios!

Algo que sempre me intrigou no meio religioso é o uso da palavra "ímpio". Mais que um simples descrente, o termo designa (segundo o dicionário) "quem é contrário à religião; não respeita as coisas sagradas ou as práticas religiosas; ofende o que se considera digno de respeito; é desumano, cruel". Interessante. Especialmente porque o nome é dado não só a quem é, digamos, "contrário à religião" propriamente, mas em geral é livremente distribuído a qualquer um que não siga a prática religiosa em questão. O ímpio é, em essência, imoral, vil e maldoso; é corrompido quase que propositalmente - ou ainda pior: pelo próprio diabo.
O emprego dado à palavra em especial nas religiões monoteístas (como o cristianismo e o islã) é poderoso - refere-se a todo outsider. Essa sistemática é de um maniqueísmo tremendo que pode produzir, entre outras coisas, um profundo preconceito. Não é raro, por exemplo, que cristãos (para citar a religião mais presente entre nós, ocidentais) julguem o espiritismo, as religiões africanas e os ateus como imorais ou mesmo diabolicamente possessos. Figuras do tipo são frequentemente demonizadas em declarações que tendem a generalizá-las no satanismo - a adoração do diabo e outros demônios - ou simplesmente no ódio a Deus. A palavra "ímpio" é livremente empregada nesse contexto, tratando outras religiões (e mesmo irreligiões) como profanas e imundas.
Mas não para por aí - mais interessante ainda é o maniqueísmo entre as vertentes de uma mesma religião. O filme Homens e Deuses (Des hommes et des dieux, 2010, de Xavier Beauvois) retrata isso com maestria. Em determinadas cenas, pessoas de diferentes facções islâmicas acusam umas às outras de "não entender o Corão", ou mesmo de não o ter lido. Fora do cinema, a situação se apresenta não só no Islã, mas também no Cristianismo: não é raro que protestantes e católicos acusem-se deste mesmo mal, e mesmo entre diferentes vertentes católicas ou protestantes há essa troca de farpas. É estranho como a Bíblia e o Corão, ao mesmo tempo em que são defendidos com base na interpretatividade, vêem interpretações que fogem à linha de raciocínio de um determinado crente serem veemente negadas. A alegação? São interpretações erradas, que nada têm a ver com o texto sagrado - ou pior, são confusões implantadas pelo próprio diabo.
Por que, eu me pergunto, existe essa preocupação? Para ser cristão, por exemplo, não basta aceitar Jesus como seu senhor e salvador, independente de se você rezará para Maria pedindo que ela interceda junto a Cristo, ou que você ore em línguas? A forma que você louva a Deus não é, afinal, justamente uma forma de louvor? Ou deve existir uma forma correta de fazê-lo? Claro, a moral e os costumes estão sujeitos a análise, mas estão no mesmo nível que a moral e os costumes de todas as outras religiões e sistemas éticos. Levar uma vida íntegra e boa não é exclusividade de uma ou outra religião, nem muito menos de uma ou outra facção religiosa - e aí está o problema. O maniqueísmo de alguns monoteístas é tão profundo que eles muitas vezes não notam a diferença entre "moralmente bom" e "religioso". Não estou dizendo que todo religioso é assim, mas essas críticas preconceituosas (no sentido de que partem de noções pré-concebidas da suposta impiedade e malevolência dos outros) são notáveis em muitos, mesmo que eles não percebam ou admitam.

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