quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O vulto das folhas secas

Quando ele me deixou, a paralisia tomou conta do meu corpo. Ecoou por dentro do meu tronco, tremendo cada osso no tórax e sacudindo os pulmões, o grito mais assustador que eu jamais pudera imaginar. E no entanto nem uma onda de som, nem um sopro, deixou a garganta. Oximoro, essa é a palavra. A compreensão infernal de como um todo pode ser nada simultâneo. Era uma explosão, um rodopio, o caso de embriaguez mais severo que tive; contudo vazio, delével - deleto -, fatigado. Exausto da longa e sinuosa trilha escondida no subterrâneo, sob a luz do dia e o caminho de um rio que fluía vivo, ali sem dizer, mas se fazendo notar. Todo caso de amor é, afinal, esse ambíguo traçado. As águas e suas cavernas. A pirâmide e sua tumba, esculpidas simultâneas, sem que se importasse com nada senão a beleza da obra. Queremos sempre o belo, e tomamo-lo, sem apreço pela cerimônia, das mãos da realidade. Mas a feiticeira sabe o que faz. Sabe que mesmo vendendo-nos essa poção tão desejada, como num passe de mágica ela retornará ao equilíbrio do feitiço, metabolizando em dor.
Entretanto o sequestro do corpo não fora sequer o princípio da dor. O choque de voltar ao mundo não bastara. Era preciso mergulhar no espectro da solidão antagônica ao amor, sofrer as sequelas de demasiada dose. Os meses seguintes foram de desconstrução. A casa, aos poucos, deixava pedaços. Enquanto os guindastes do ego puxavam-na com todas as forças precipício afora, restos da casca de concreto ficavam para trás, gotejando em enormes monólitos despejados na água negra a restar no profundo, o que sobrou de um rio cavernoso. Armários metade vazios, aquela bolsa não mais no sofá, a comida estragando rápido, um retângulo desempoeirado na parede onde estivera uma cópia de um Rothko... As doses exageradas de pó de café, uma maior organização dos objetos dispostos na casa... O pior de tudo foram a volta dos pesadelos e da nictofobia. Não há travesseiros que compensem na cama.
A sensação, afinal, é ausência de si. Não do outro. Ele perfaz tantos nichos em ti que te sentes despida, amarrada em galhos velhos, estufada de folhas amarelas escondendo cada poro. Outra noite sonhei delas brotando em meu ventre até vulcanizarem da boca cortando o dueto que cantávamos eu e o vento, e planarem nele infinitas. Vi-as chegando à lua, saindo da minha janela, quando um vulto no teto desceu agarrado às paredes e passou a engolí-las num beijo demoníaco. As relvas secas ainda restantes dentro de mim dançaram neste instante, uma sensação de borboletas voando, e saíram ainda mais enfurecidas. Foi tanto furor, tão depressa, que senti como se a vida me deixasse. Aquele instante durou um ano. Nem um gemido ousava lutar por espaço no rito macabro que me apossava. De repente via-me dentro de mim, num redemoinho amarelo urrando entre meus cabelos. O uivado da ventania era como um calafrio escalando minha pele. A força daquilo tudo arrancou-me de onde estava parada, e assustada rodopiei. As folhas iam se acabando, o ventre se esvaziando e eu vi minha garganta se aproximar. Lá fora, ou na consciência, senti-me lavada no furacão, e novamente vazia - vazia-completa. Sublime. Então soltei um grito, um clamor de paixão, de medo, de euforia e de luto. Foi quando acordei.

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