terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Um jogo de buraco


A luz arredia do estrelado fazia bem à sensação de injustiça. Aliada à maresia, dava sossego, mesmo estando à porta dos pensamentos o ódio ainda doído da submissão frígida e frouxa ao silêncio. As palavras deixaram de escapar aos lábios, após a gritaria talvez um pouco desenfreada de agora pouco, ainda ressoando nos latidos de uns cães escondidos nas casas do condomínio de praia e numa ou outra luz acesa, depois de ter passado algumas horas da noite no escuro. Pouco a pouco iam se apagando, as janelas e os bichos. Na rua, pelo menos. Na mente de Atos ainda estavam bem nítidos, mesmo que na fala de antes a clareza tivesse faltado. Sempre falta. O falado e o sentido gostam de desencaixar, num algo dito errado aqui, num outro repensado ali, num mal expressado acolá, num mal compreendido. Pelo menos agora podia focar um pouco nos restelos iluminados da combinação de estrelas e mar, sob a trilha sonora das ondas e a tranquilidade da maresia no rosto e areia nos pés. Só incomodava um pouco no calção essa combinação calmante. O vento grudento arrastando consigo uns grãos a impregnarem nos pelos da coxa e no tecido das ceroulas. Ia acabar precisando de outra ducha na hora de voltar para casa.
Mal lembrava como chegara ali, falando nisso. Agora tudo parecia tão repentino, rápido. Considerou que de fato era um bocado cômico um rei de paus interromper uma partida de baralho com tanto reboliço. Não era ele a causa real, claro, mas rever o acontecido sob essa perspectiva realmente soava engraçado.
- Qual a graça? - indagou Cristina, ouvindo o leve riso do filho apesar dos sons de natureza ao redor.
Atos até esquecera a presença da mãe. Imerso num isolamento mental quase propositalmente egoísta, como para causar nela um sentimento de culpa, acabara permitindo à memória ocultar a companhia naquele cenário. Não quis responder. Em parte vingativo, noutra por receio de soltar alguma grosseria e recomeçar a discussão, ou correr o risco de perder a razão. Se já não perdera. Mas se assim fosse, ela o fizera tanto quanto. Aliás, não. Ela nunca a tivera. Estava errada desde o princípio.
- Nada - respondeu, afinal, com ar de indiferença.
Cristina achou por bem não forçar o assunto. Sabia das intenções do filho com sua fala ríspida. Estava cansada para retomar o contato, mas sabia que uma hora ou outra seria necessário. Não podiam permanecer sentados sob o luar pelo resto da noite, cada qual abraçado aos joelhos na areia. Também não queria se ver brigada com um rebento, independente do motivo da discórdia. Sentia a obrigação materna de iniciar a conciliação, mesmo sabendo talvez ser a sua posição parte do problema, num quadro geral. Não queria ver Atos perdido, mas também não queria achado num rumo errôneo, e ele detestava que ela pensasse assim. Ou ao menos assim dissera há pouco, em meio a uma ofensiva de palavras duras. Mas entre as frases agressivas, ela acreditava ter entendido os sentimentos do filho. Nem por isso perdera a oportunidade de desabafar a dor de ventre que sentia ao vê-lo diferente daquele sonho de gestante perdido há tantos anos. Não via sentido nessa rebeldia.
Agora se arrependera do ponderar talvez fantasioso de mãe de primeira viagem. Já não era mais jovem, onde tudo é ideal. E, segurando a barra do vestido para não lhe perder o controle na brisa noturna, arriscou:
- Eu te amo, filho.
- Você não sabe o que significa amar de verdade. - alvejou Atos no mesmo instante. - Você ama o protótipo que está na sua mente. No fundo você só ama a si mesma.
- Pode até ser que você pense isso, apesar de eu não crê-lo, mas não é assim.
- É, mãe? Você tem razão de novo, é isso?
- Na compreensão da forma do meu amor por você, sim, eu estou certa.
- Não estou falando disso. Digo da sua descrença no que penso. Vê como é inevitável para você achar que sabe mais do que eu, até quando o assunto somos eu e meus pensamentos? E se a sensação que você transmite no seu amar - disse, ironicamente - não for amorosa? Não é fundamental, no amor, o ser amado sentir-se como tal? Se não é esse o caso, só ama-se a si mesmo.
Novamente Cristina sentiu um desejo rompante de despejar sua frustração em palavras. Atos tinha um jeito de falar que lhe cerceava num sufoco. É claro que o amava, como ele podia questionar isso? Como conseguia não entender essa realidade? E que visão de amor era essa, tão fria e racional, incapaz de enxergar a sua humanidade inerente, dúbia e falível?
Num longo suspiro, conteve-se. Fitou novamente o mar e deixou o coração agitado resfriar com uma dose de estrelas e ondas. E enquanto o fazia, pensou que talvez o filho tivesse razão num ponto. Essa era uma discussão sobre quem estava certo, não sobre amor. "Amor", ela ponderou, "é ambíguo e imprevisível. Talvez ele saiba disso e esteja na verdade só buscando outra forma de me questionar. De certa forma, sinto também querer estar com a razão. Mas sobre o que, afinal? Regras de uma partida de buraco? Qual o mistério oculto nessa explosão"?
Atos, por sua vez, fervilhava impaciente com o novo silêncio imposto pela mãe. Sentia nesses cortes uma atitude intencional para irritá-lo. E apesar de ficar cada vez mais difícil ignorar a raiva, mesmo com a ajuda da praia, recusava-se a tomar a iniciativa da discussão novamente. Bastara a reclamação da injustiça cometida no jogo por Cristina; e ter ido atrás quando ela deixou a mesa e a casa irritada com a denúncia, mesmo que para dizer umas poucas e boas. Sim, ele era um pouco cabeça quente, e por isso mesmo não queria ter o título mais uma vez estampado na testa por voltar a desabafar. Não era sua culpa ter herdado o gene da teimosia, apesar da mãe nunca querer reconhecê-lo.
O rapaz sentia-se um poço infinito de mágoas, e não tinha explicação para isso. Via na mãe uma antítese natural. Nutria por ela um ódio de Nêmesis quase constante. Amava-a, a seu modo. Suportava o cotidiano. Porém mal se falavam fora das trivialidades. Detestava sua condescendência. Sentia nela um peso de remorso e desaprovação, mas acima de tudo uma obsessão velada com a verdade. Obstinada ao ponto de tentar apagar a verdade dele. Era uma luta por autenticação para Atos. Fazer valer o seu ser independente do dela. E ela querendo engolí-lo, absorvê-lo de volta ao útero - um ventre moral ao qual seu corpo tinha aversão.
As verdades, afinal, são assim. Nascem querendo viver, e acabam almejando tomar o mundo. A de Atos não era diferente, por mais que negasse. Ou melhor, fingisse. Verdades são mais humanas do que normalmente pensamos. A forma que se confrontam e conciliam, a ambiguidade de seus caminhos. O problema das verdades, enfim, é serem demasiado humanas. Interpretam e constroem sua passagem trespassando a realidade ao ponto de perderem-se dela, e então sua busca se torna um rito de retorno, sem conhecer a estrada. E ficam lá, eretas, complexas, estáticas a olhar o Universo sem saber onde erraram, sem compreender como encontrar o ponto de onde brotaram. Sem saber viver.
- Sabe - disse Cristina -, não entendo nossas desavenças. Elas parecem surgir do nada, em discordâncias tão triviais...
- E ainda assim vão fundo - completou Atos.
- Parecem tão rotineiras.
- E únicas.
- Às vezes sinto que são tão profundas que nem são nossas - encerrou Cristina, ao que Atos reagiu com certo espanto. Ele sempre sentira algo assim, mas não soubera dizê-lo.
O buraco é sempre mais fundo. Normalmente acaba num buraco negro, onde o mistério é eterno. E este é o mais profundo segredo de todos: o mistério maior para onde vagam as verdades, sugadas pela força do inevitável, é o infinito. Jaz em tudo? Ou em nada? Questões pesarosas demais para qualquer humano, excessivamente difíceis para as certezas. E, no entanto, inquietas, ficam ali incomodando, causando desencontros. O cinismo do cosmos, que compõe astros para destruí-los. E tudo que nos resta é contemplá-lo em sua imensidão, quando não estamos colidindo feito cometas e planetas.
- As estrelas estão muito bonitas hoje - irrompeu Cristina, quebrando o silêncio que se sucedera à convergência inesperada.
- O mar também. - respondeu Atos - A ideia de vir à praia valeu a noite, com essa vista.
Cristina sorriu. Olhou para o filho, que retribuiu o olhar. A natureza tem um jeito muito próprio de sintetizar antônimos, mesmo não extinguindo os incômodos.

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