quarta-feira, 29 de maio de 2019

Prelúdio

(Max Richter - On The Nature of Daylight)

Meu é o prelúdio
De tudo que vem e virá
Como veio
A tempo.
Meu é o canto
Da luz que incide
No primeiro brilho
Quando amanhece -
E quanto amanhece
A vida que há!
Meu é o lamento
Que magnifico
Na voz vibrando
A distante ecoar:
Ecoa nos vales
E nas montanhas,
Ecoa nos rios
E tanto mais lá;
Então reverbera
E volta tremendo
Em som sobre o corpo
E resfria escoando
No meu respirar.
Meu é o lamúrio
Que aceito -
Aceito no tempo;
Aceito no relento;
Aceito no alento
Em que me entrego
E me alegro
E componho.

sábado, 25 de maio de 2019

Oração

(Madonna - Like a Prayer)

Liberta-me
De ser redundante em minha oração;
De rezar os mesmos mantras
Que mandingo por mim
No lugar dos outros vícios
Em que me comprazo;
De ser ela subordinada
Aos velhos anseios
E sentimentos,
Porém também das palavras
Que se renovaram
Num ritual superficial
Em que me encerro desconflitada.
Liberta-me tu
Da paixão desgovernada
Que me humaniza enganada
Em crenças de ti;
Do amor que tu não controlas
Nem tampouco eu;
Faze uma magia do antiamor,
Uma poção amarga de cura
Para neutralizar em cinzas
No meu estômago.
Liberta-me Tu
De ser Deus
E ter de encontrar meus sentidos
Num mundo de silêncios e escuridão;
Liberta-me dos próprios sentidos
E me esplandece em descarne
Antes que o escárnio da vida
Me apodreça em terra.
Liberta-me Eu
Das vozes esguias
Pairando entre as frestas da mente;
Liberta-me como Eu soube fazer
Quando o mundo era puro
Entre as arestas da minha emoção -
Quando eu soube o quanto é duro
Manter o controle que tinha
E quase esquecia
O horror do turbilhão.
Liberta-me quem quer seja
- O amor, o temor, o ego, a poesia -
Da minha oração em transe
Repleta de compreensão
E completamente vazia.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Feminina

Tudo que eu sabia
Era natural ao mundo das meninas,
Mas o que eu não percebia
Era o quanto ao mergulhar
Na minha feminilidade
Eu não teria mais lugar
Na minha comunidade;
O quanto eu não saberia
Me comunicar
Com quem eu gostaria;
Quanto não conseguiria
Me conectar
Com quem desejaria.
Mas de forma nenhuma isso é culpa das mulheres.
Eu que as escolhi como porto seguro
E lar;
Eu que me deixo ignorar
O que não seja inteiramente feminino
No seu molde vernacular,
Que me permito me isolar
Dos meus
Em quem poderia ter um encontro
Se não mais, ao menos igualmente profundo.
É culpa minha
E dos meus,
Que não souberam adentrar
Suas feminilidades
Sem medo de se criar
Independente de tudo;
Não que eu os possa culpar:
O medo sempre em mim também se faz.
Eu fujo ao feminino que me é tão confortável
Por medo de não se me aceitar
Dentre meus iguais
Os meus sinais
De carência e dor
Que o isolamento traz.
Deve ser, no fim,
Que os bichos rejeitados
Sempre temem a rejeição
E se rejeitam mutuamente
Previamente -
Antes de se sujeitarem
A qualquer destruição...
O preço que afinal se paga
Pela sobrevivência
É a desconexão.

sábado, 11 de maio de 2019

Catedral Estrelada

Deveria haver um poema que resumisse o meu tudo.
Eu deveria ser seu autor.
Mas a minha poesia é feita de cacos -
Pedaços avulsos que raramente formam uma imagem completa,
Apenas fragmentos esparsos de um quadro maior.
Minha poesia são os instantes,
Os relapsos rompantes de sentimento agudo
Como uma fotografia clicada na fúria dos fins de Ato
Que condensam a vida num seu extrato
Sem mostrar do roteiro a química extra
Que moldou seu contralto.
Deveria haver um poema que me entendesse
E eu deveria ser seu autor,
Mas eu só me entendo em pedaços
Quando em frangalhos eu me esparramo no asfalto
E coleto meus trapos rasgados.
Só então observo suas linhas de perto
E examino meus percalços;
Um exame que só alcanço quando me rasgo.
E a tapeçaria completa, então, como fica?
Será que não posso me ler inteirado?
Será que ler meus fiapos sequer pode ser
O mesmo que me ler?
Não reside aí um problema humano
Do qual o poeta deveria saber fugir?
Que escritor é esse que pretende entender as humanidades
E não consegue sequer se enxergar inteiro
Para se descrever?
Será que mentem os artistas que fingem saber?
Pendo inevitavelmente a crer que sim.
A mim parece que os artistas remendam cacos
E eventualmente têm a sorte de um humano completo conceber.
Ou isso é só inveja de quem não o consegue fazer.
Inveja de quem permanece nas suas facilidades
E não quer se dar ao esforço de enfiar a cabeça
Debaixo das grades do portal
E enxergar o lado de lá.
A minha fraqueza é tal que os olhos não permitem
Transitar entre as formas de mim.
Eu não devo poder navegar nos meus tempos
Pois o deus tempo no passado me amaldiçoou
Com as dores da mente que me naufragaram
No mar das possibilidades perdidas.
Eu sou para sempre um semi-humano
Limitado pela cabeça que a vida me obrigou.
Eu sou para sempre humano demais para transcender
Como outros humanos souberam fazer.
Eu pêndulo entre tocar o divino e desvanecer
E na minha humanidade me confino
Oscilando na perda de tempo
Que é a vida a correr.
Eu me deprimo e me corroo
E não consigo me desenlaçar
Dos infinitivos superlativos
Das palavras rebuscadas e conflitivas
Que exprimem a minha condição
Descolada de mim
Sem entender como pode
Que eu me destrua
Se tão bem armada
A minha fachada eu fiz parecer.
Eu sou como a catedral estrelada
Cujos arcos são o céu
Vazio e alheio
Que eu quis me crer.

domingo, 5 de maio de 2019

Caldo

É exaustivo ser química -
Esse punhado de reações a se acumularem
No tempo e nos nervos
Se autoproclamando cognição.
É cansativo ser vida
E lutar contra os processos de putrefação.
A morte espreita em cada beirada,
Em cada desequilíbrio que o corpo falha
E ameaça fracassar...
A morte espreita em cada guinada,
Em cada curva violenta que a consciência
Finge controlar.
A vida se aflige
E reflete dentro de mim
Os processos que fora
Borbulham na imensidão.
E eu no meu caldeirão
Estou tão fora de mim
Que beiro a decantação.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Monotom

(Goldfrapp - Boys Will Be Boys)

Eu me pergunto se esqueci
Como se despeja emoção em palavras.
As pontas dos meus dedos parecem tão frias
Escorrendo em monotons sobre as linhas
Ao invés de transcorrer todo o espectro de verdades
Que outrora senti.
Talvez eu seja apenas um espectro -
Maturei tanto que nada mais me comove como antes.
Que delicioso engano seria me convencer disso.
Mas também não é verdade que me desconheci -
Não estou perdido de mim,
Desconectado do que sinto.
Apenas... Não sei o que sinto.
O que raios é isso?
Que diabos de locação é essa?
Será isso mesmo que vem com a idade?
Um torpor de quem já viveu o suficiente
Mas sente que não viveu?
Ou quem sabe esse seja o efeito de quem escolheu
Quais emoções se permitirá viver
Temendo as dores de emoções perigosas
Sem perceber tudo aquilo de que abre mão
Ao escolher esse caminho.
Mas não - não é só isso.
É tudo isso e mais um pouco.
É a minha razão temperada de mistério -
Um mistério sazonal que só nesse tempo poderia se fazer;
Mistério de quem se questiona
Buscando escapar do mais recente casulo
E sobreviver.
Eu sempre me lembro
Em algum momento
Que preciso sobreviver.
Eu sempre grito o rasgo da minha visão
E descoloro o mundo em nome da transformação,
Mas estou cansado.
Achei que já tinha superado as trocas de pele excessivamente doloridas.
Pelo visto ainda me restam tantas mudanças
Quanto anos de vida.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Aqui como em Roma

Não é que a História se repete -
Na verdade nada mudou.
Não me entenda mal: as coisas mudam
E as gerações dão sua cara
À narrativa que se conta,
Mas as coisas de fato
- Aquilo que importa -
Os sistemas,
O abuso,
As classes,
Os interesses mesquinhos,
A violência para perpetuar a roda,
O próprio tecido humano da História...
Isso não muda
E começo a crer que nunca mudará.