segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

(V)estuário

Possivelmente devo manchar-me em vermelho,
E gosto de sempre misturá-lo ao preto.
Mas hoje, talvez,
Vestirei celeste e branco;
Hoje serei um barraco azulzinho
Na encosta do penhasco;
Hoje serei tão obscuro
Quanto o branco,
Tão impuro quanto um muro retocado;
Hoje serei queda e reboco,
Manchado escorrendo nas ruas
Com uma pitada de preto.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Cirandado

(13 de Janeiro de 2011)

Passo em círculos
No redondo da vida,
Passo em voltas.
Passo e volto a passar
Num canto da vida
E noutro.
'Pare com essa mania
Passada de pelo
Passado passar'
Eu peço ao canto perdido
Da mente prismada
Que ouso portar,
Mas cá vem-me
Outro retorno
Que faz minha roda
Girando cantar
De mais um passado vivido
No canto da vida
Que segue a girar.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O poema que se pretende

(13 de Janeiro de 2010)

Ora,
Esse vício me mata!
Mata rente à porta,
Logo ali quando vou passar.
Prende-me rente à barca
Pronta para partir;
Esfola-me junto à selva
Esperando para me engolir;
E eu esperando a mente
Livre para parir
Uma ou outra ideia
Que me recrie,
Que me recesse.
Tenho mais é que ficar
Tal qual prenha:
Esperar meus nove meses,
Talvez mais, talvez menos,
E torcer por um abismo de dor
Que talvez, ou mais que talvez,
Alimente-me um novo vício
Que detestarei
E detestar-me-á.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Paulisteia

(12 de Janeiro de 2010)

Minha cara noite
De cara amarrada
E marrenta calmaria:
Sorria pra mim,
Que nós outros não temos marra
Só pura tara pela harmonia
Que toca nos bares de tua brisa,
Ressoa na espuma do chopp
E recai nas escusas luzes
A pintar-te urbana.
Sorria, noite princesa,
Que teus príncipes correm às ruas
Pedindo pra ver-te corada
E cheia de vida.

Duas medidas

(12 de Janeiro de 2010)

Iara reza por um copo de chuva
Para banhar os botos
E o mar.
Luana só pensa num copo de areia
Que possa enxugar
Seu lar.

Cacique

(12 de Janeiro de 2010)

Essa boca, esse canto,
Esse cheiro, esse verde,
Essa terra marrom,
Essa choupana,
Esse rio, esse mar amarelo,
Esse teco de pano,
Esse mato capim,
Essa vida serrana,
Esse um, esse outro,
Esse pau-a-pique,
Essa vida plana
Que virou pico imerso no plano maior
De um shorts, um jeans e um computador.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Escuro

Lá na sombra do canteiro
Vive o homem
De olhos que nunca vi.
Vulto esguio passa
Entre minha vista
E velas turvas
Espreitando cada ponto
De minha loucura
Que grita tão sã.
E cá nas minhas entranhas
O homem para e olha-me
Como sombra no telhado
E claridão de pavio,
Que num fósforo se acende
E perde-se no relance
De um sopro e um arrepio.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Un

Um dos principais problemas apontados na indústria da música nos últimos anos refere-se à renovação de seus estilos musicais: o hip hop, pop, R&B e rock hegemonizam o cenário musical já a alguns anos, e até agora não parece surgir nenhum estilo alternativo a estas correntes dominantes. No intuito de fugir da rotina, Dan Black lançou em 2009 seu debut como artista solo, entitulado UN.
Mais conhecido como vocalista da banda The Servant, que terminou em 2007, Black afirma que sua pretensão com este álbum era fazer música que não pudesse ser categorizada nos estilos mais recorrentes da música secular contemporânea. O próprio nome do disco nos remete ao prefixo que denota negação, que em português seria o "in". Podemos reconhecer, neste sentido, um triunfo do compositor, cuja obra é normalmente reconhecida como sendo de wonky pop, uma categoria musical empregada pela BBC para designar artistas com musicalidade diferenciada, como por exemplo Mika, Kerli e até mesmo Björk.
O problema é que a evolução da música (com o perdão da aparência construtivista do termo) se dá através da interação musical, e não simplesmente pelo gênio criativo de um ou outro artista. Assim, invariavelmente, categorias musicais serão empregadas (vide o termo wonky pop) e comparações serão possíveis. Ao longo do álbum são notáveis influências de Prince, Michael Jackson, Janet Jackson e David Bowie, e similaridades com Mika, La Roux e outras bandas do underground musical dos anos 2000. Os vocais do cantor assimilam-se particularmente aos de Mika. Sua estrutura musical, contudo, é mais eletrônica. Músicas como Alone e Wonder lembram, em suas introduções, trechos de músicas do La Roux. O álbum também faz uso de vários samples (trechos de letra, ritmo ou harmonia de outras músicas), como por exemplo a música Symphonies, originalmente chamada HYPNTZ, que emprega a letra de Hypnotize, de Notorious B.I.G., e a bateria de Umbrella, de Rihanna.
É difícil destacar uma ou outra canção no conjunto, mas podemos apontar Ecstasy, uma fusão de alegria inocente com dramaturgia cotidiana, Alone, uma bela música de romance imerso em tristeza urbana, Yours, com sua revolta contida, e Cigarette pack, que representa um desejo puro de arte e revolução.
A obra é de boa qualidade: todas as músicas são interessantes e razoavelmente únicas. De forma geral suas letras põem em contraponto melancolia moderna e alegria jovial. O estilo realmente é diferenciado, mas não chega a ser inovador. O disco soa mais como uma coletânea de influências apresentadas sinteticamente do que uma intervenção artística propriamente dita.
Vale a pena ouvir, em especial hoje em dia, quando a maior parte dos artistas de apelo comercial são tão ignobilmente iguais e sem criatividade na hora de escrever ou escolher suas letras. Dan Black dá um sopro de calma e urbanismo num cenário musical cada vez mais industrializado e obcecado com o estético.

Título: UN
Artista: Dan Black
Lançamento: 13/07/2009
Gravadora: A&M, Polydor, The:Hour
Produtor: Dan Black
Gênero: Wonky pop, alternative dance
Faixas - duração:
1. Symphonies - 3:41
2. U + me = - 3:11
3. Ecstasy - 4:11
4. Alone - 3:33
5. Cocoon - 4:22
6. Yours - 3:27
7. Pump my pumps - 3:35
8. Wonder - 3:41
9. Cigarette pack - 4:16
10. Life slash dreams - 3:46
11. I love life - 3:12
12. Let go - 5:00

Avaliação: Razoável

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Noviça escarlate

De encanto e ternura
De pernas para o ar
Se faz a ciranda
Dos jovens;
De anseio e loucura
E vadia indecência
Repleta na espúria
Cor da inocência;
E eu que sou jovem
Fico aqui a sonhar
Da ciranda mais pura
Que podia cantar
Na terra da luxúria,
Noiva do sabiá.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Uma visão do aborto no Brasil

A discussão de temas polêmicos raramente se dá de forma aberta e sincera, para infelicidade do debate político. Questões como aborto, homofobia, células tronco e eutanásia vêm recobertas por uma dura casca de preconceito e repulsa, que dificultam imensamente sua apreensão no meio social e, por conseguinte, legal. Discursar acerca do aborto, como pretendo neste texto, prova-se uma atividade de difícil exercício; ao ler tal palavra, boa parte das pessoas já decide em sua cabeça se o aborto é certo ou errado. Embasar tal certeza, contudo, parece ser para a maioria algo remoto e desnecessário, ao menos dentro de uma lógica plenamente humana: quase sempre o argumento que define as opiniões refere-se à vontade divina.
Neste sentido vale o que disse com muita sensatez o então-senador Barack Obama, num discurso de 2006: discussões que adentram a esfera política devem ser tratadas com laicidade, mesmo por um religioso; para que seu argumento valha, deve ser universalizado, exercendo uma lógica que compreenda cristãos, muçulmanos, budistas, ateus e tantos outros. A crença na inerrância de seus respectivos preceitos religiosos dificulta este exercício de secularismo, mas é necessário abrir os olhos para a realidade do Estado num mundo globalizado e essencialmente igualitário.
O Direito postula a existência dos chamados direitos fundamentais, que são aqueles valores humanos de maior importância para a manutenção de determinada sociedade. Direito a vida, propriedade, dignidade e liberdade, junto com outros, entram neste rol de princípios a serem plenamente protegidos pelo Estado em nome da defesa de seus cidadãos e da manutenção da base popular. Estes direitos, contudo, podem entrar em conflito. A questão do aborto, em especial, põe em antagonismo os direitos a vida, dignidade e liberdade. Até onde o feto tem direito a vida e a mãe tem direito a escolher seu destino? Para fazer uma sucinta análise deste tema, abordaremos a influência que cada um destes direitos fundamentais tem sobre o aborto.
Talvez o cerne da polêmica seja a vida do feto. Esta entidade é dotada de personalidade jurídica, mesmo que ressalvada, e por isso deve ter seus interesses resguardados pela Lei. No entanto é importante observar que todo direito é limitado e pode ser restringido quando afeta o espaço de outro direito fundamental. Devemos então considerar o âmbito de atuação efetiva do direito a vida, e para tal o melhor mecanismo a ser aplicado é a conceituação da vida. Óbvio que esta questão é complicada e cheia de nuances, já que adentra as esferas moral, filosófica e orgânica. Neste ponto me farei um tanto simplista, e nisso admito estar abrindo espaço para questionamento e reinterpretação, entretanto acredito que minha escolha de preceito é extremamente lógica e válida. Partirei do princípio de que vale o conceito básico de vida humana empregado com maior frequência na medicina; ou melhor, o conceito de morte humana empregado na medicina: está morto o ser humano que atinge a morte cerebral, ou seja, o cessamento de toda e qualquer atividade cerebral.
Tomado este dogma, podemos induzir que não é vida humana o organismo que não apresenta atividade cerebral. Assim, até meados do terceiro mês de gestação, o feto, que não possui sistema nervoso central formado, não é um ser humano com vida independente. Até o terceiro mês de gravidez, portanto, a liberdade da mulher de optar pelo aborto tem prioridade. Depois deste período o conflito entre vida e liberdade se acirra.
Em outros casos podemos observar ainda um conflito entre as vidas do feto e da mãe. É justo teorizar que nesta situação a vida da mãe, dotada de personalidade jurídica plena, deve ser protegida com maior vigor, tal qual nossa legislação o faz atualmente.
Em se tratando da dignidade da pessoa humana, temos o direito a integridade da honra da mulher sobrepondo-se à vida do feto em determinados pontos. Podemos exemplificar com uma das atuais permissões do aborto de nossa legislação, que admite a operação em caso de gravidez decorrente de estupro. O direito a dignidade funde-se, em alguns aspectos, à liberdade da mulher em escolher pela prática do aborto ou não. Podemos dizer que o direito a dignidade justifica a liberdade em alguns momentos. Há quem considere, contudo, que a livre iniciativa abortiva é suprema, e deve reinar acima de qualquer conflito de direitos, proposta que foge à minha compreensão: direitos fundamentais são essencialmente equivalentes, e um só deve sobrepor-se a outro em situações específicas.
De forma resumida, a liberdade de abortar sobrepõe-se à vida do feto até o terceiro mês de gestação, a partir do qual o aborto só vale se a dignidade ou a vida da mãe justificar sua decisão.
A teoria chega a soar simples, porém a aplicação destes preceitos à realidade (em especial a brasileira) é complicada. Temos um total aproximado de 1 milhão de abortos ilegais realizados no Brasil anualmente, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com o Ministério da Saúde, complicações em decorrência de abortos mal-performados são a quarta maior causa de óbitos relacionados a gravidez no país. Não são raros nas comunidades menos favorecidas os casos de mulheres que chegam aos trinta anos com mais de um aborto em seu histórico. Além disso, o sistema nacional de saúde pública é extremamente precário e não está preparado para comportar a demanda de abortos que se estabeleceria com a legalização da prática. São necessárias muitas correções e políticas públicas para viabilizar este novo tipo de legislação abortiva.
Em primeiro lugar é preciso reformar a saúde pública, tema no qual nem sequer me aprofundarei pela infelicidade que é gerada na discussão da saúde no Brasil. Este fator por si só já atrasa uma possível legalização em anos. Em segundo lugar deve ser criado um sistema de acompanhamento e apoio psicológico para as mães, tanto pré quanto pós aborto. Não há de se negar que abortar um filho gera um impacto profundo na psique da gestante, nem a possível transformação do aborto em método anticoncepcional. É fundamental prevenir a difusão de tal atividade, criando barreiras convincentes à prática: só deve abortar a mulher que tiver pleno conhecimento e convicção do que está fazendo, e que estiver devidamente amparada para lidar com todo o processo.
É preciso aprender que a simples reprovação moral e religiosa da prática do aborto não irá extingui-lo. O aborto é, além de tudo, uma questão de saúde pública, e deve ser tratado como tal. Compreender que a dignidade e liberdade da mulher são tão importantes quanto a vida do feto é fundamental para esta apreensão. Também não devemos esquecer que legalizar o aborto não precisa necessariamente significar estimulá-lo nem sequer aprová-lo, mas também pode ser uma forma efetiva de controlá-lo, conscientizar as pessoas e, quiçá, reduzi-lo.