A discussão de temas polêmicos raramente se dá de forma aberta e sincera, para infelicidade do debate político. Questões como aborto, homofobia, células tronco e eutanásia vêm recobertas por uma dura casca de preconceito e repulsa, que dificultam imensamente sua apreensão no meio social e, por conseguinte, legal. Discursar acerca do aborto, como pretendo neste texto, prova-se uma atividade de difícil exercício; ao ler tal palavra, boa parte das pessoas já decide em sua cabeça se o aborto é certo ou errado. Embasar tal certeza, contudo, parece ser para a maioria algo remoto e desnecessário, ao menos dentro de uma lógica plenamente humana: quase sempre o argumento que define as opiniões refere-se à vontade divina.
Neste sentido vale o que disse com muita sensatez o então-senador Barack Obama, num discurso de 2006: discussões que adentram a esfera política devem ser tratadas com laicidade, mesmo por um religioso; para que seu argumento valha, deve ser universalizado, exercendo uma lógica que compreenda cristãos, muçulmanos, budistas, ateus e tantos outros. A crença na inerrância de seus respectivos preceitos religiosos dificulta este exercício de secularismo, mas é necessário abrir os olhos para a realidade do Estado num mundo globalizado e essencialmente igualitário.
O Direito postula a existência dos chamados direitos fundamentais, que são aqueles valores humanos de maior importância para a manutenção de determinada sociedade. Direito a vida, propriedade, dignidade e liberdade, junto com outros, entram neste rol de princípios a serem plenamente protegidos pelo Estado em nome da defesa de seus cidadãos e da manutenção da base popular. Estes direitos, contudo, podem entrar em conflito. A questão do aborto, em especial, põe em antagonismo os direitos a vida, dignidade e liberdade. Até onde o feto tem direito a vida e a mãe tem direito a escolher seu destino? Para fazer uma sucinta análise deste tema, abordaremos a influência que cada um destes direitos fundamentais tem sobre o aborto.
Talvez o cerne da polêmica seja a vida do feto. Esta entidade é dotada de personalidade jurídica, mesmo que ressalvada, e por isso deve ter seus interesses resguardados pela Lei. No entanto é importante observar que todo direito é limitado e pode ser restringido quando afeta o espaço de outro direito fundamental. Devemos então considerar o âmbito de atuação efetiva do direito a vida, e para tal o melhor mecanismo a ser aplicado é a conceituação da vida. Óbvio que esta questão é complicada e cheia de nuances, já que adentra as esferas moral, filosófica e orgânica. Neste ponto me farei um tanto simplista, e nisso admito estar abrindo espaço para questionamento e reinterpretação, entretanto acredito que minha escolha de preceito é extremamente lógica e válida. Partirei do princípio de que vale o conceito básico de vida humana empregado com maior frequência na medicina; ou melhor, o conceito de morte humana empregado na medicina: está morto o ser humano que atinge a morte cerebral, ou seja, o cessamento de toda e qualquer atividade cerebral.
Tomado este dogma, podemos induzir que não é vida humana o organismo que não apresenta atividade cerebral. Assim, até meados do terceiro mês de gestação, o feto, que não possui sistema nervoso central formado, não é um ser humano com vida independente. Até o terceiro mês de gravidez, portanto, a liberdade da mulher de optar pelo aborto tem prioridade. Depois deste período o conflito entre vida e liberdade se acirra.
Em outros casos podemos observar ainda um conflito entre as vidas do feto e da mãe. É justo teorizar que nesta situação a vida da mãe, dotada de personalidade jurídica plena, deve ser protegida com maior vigor, tal qual nossa legislação o faz atualmente.
Em se tratando da dignidade da pessoa humana, temos o direito a integridade da honra da mulher sobrepondo-se à vida do feto em determinados pontos. Podemos exemplificar com uma das atuais permissões do aborto de nossa legislação, que admite a operação em caso de gravidez decorrente de estupro. O direito a dignidade funde-se, em alguns aspectos, à liberdade da mulher em escolher pela prática do aborto ou não. Podemos dizer que o direito a dignidade justifica a liberdade em alguns momentos. Há quem considere, contudo, que a livre iniciativa abortiva é suprema, e deve reinar acima de qualquer conflito de direitos, proposta que foge à minha compreensão: direitos fundamentais são essencialmente equivalentes, e um só deve sobrepor-se a outro em situações específicas.
De forma resumida, a liberdade de abortar sobrepõe-se à vida do feto até o terceiro mês de gestação, a partir do qual o aborto só vale se a dignidade ou a vida da mãe justificar sua decisão.
A teoria chega a soar simples, porém a aplicação destes preceitos à realidade (em especial a brasileira) é complicada. Temos um total aproximado de 1 milhão de abortos ilegais realizados no Brasil anualmente, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com o Ministério da Saúde, complicações em decorrência de abortos mal-performados são a quarta maior causa de óbitos relacionados a gravidez no país. Não são raros nas comunidades menos favorecidas os casos de mulheres que chegam aos trinta anos com mais de um aborto em seu histórico. Além disso, o sistema nacional de saúde pública é extremamente precário e não está preparado para comportar a demanda de abortos que se estabeleceria com a legalização da prática. São necessárias muitas correções e políticas públicas para viabilizar este novo tipo de legislação abortiva.
Em primeiro lugar é preciso reformar a saúde pública, tema no qual nem sequer me aprofundarei pela infelicidade que é gerada na discussão da saúde no Brasil. Este fator por si só já atrasa uma possível legalização em anos. Em segundo lugar deve ser criado um sistema de acompanhamento e apoio psicológico para as mães, tanto pré quanto pós aborto. Não há de se negar que abortar um filho gera um impacto profundo na psique da gestante, nem a possível transformação do aborto em método anticoncepcional. É fundamental prevenir a difusão de tal atividade, criando barreiras convincentes à prática: só deve abortar a mulher que tiver pleno conhecimento e convicção do que está fazendo, e que estiver devidamente amparada para lidar com todo o processo.
É preciso aprender que a simples reprovação moral e religiosa da prática do aborto não irá extingui-lo. O aborto é, além de tudo, uma questão de saúde pública, e deve ser tratado como tal. Compreender que a dignidade e liberdade da mulher são tão importantes quanto a vida do feto é fundamental para esta apreensão. Também não devemos esquecer que legalizar o aborto não precisa necessariamente significar estimulá-lo nem sequer aprová-lo, mas também pode ser uma forma efetiva de controlá-lo, conscientizar as pessoas e, quiçá, reduzi-lo.
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