Sonata for Violin and Piano in G minor, de Claude Debussy
Pleiteio
Pareço um corpo cheio
Passeio no meio de algo
O sangue correndo
Os olhos vibrando.
Algo me recorda,
Acerta a veia,
Mas não acorda;
Algo que pleiteio
E me olha
Com vazio animal
De caça quando busco ensandecido
Um ritual -
Algo que me veja
Como mais que uma lembrança distante.
Tanto peço,
Tanto esmoreço,
Tanto esqueço
E perco sem perceber.
Medo.
Medo de viver em degredo.
Passivo. Segredo.
Passar os dias
Remisso das bolhas
Num omisso ver.
Saber
E ainda arremeter
Contra o lago de fogo
De são permanecer.
Afável vilipêndio
Pende instável
Hora vil, hora ameno,
Um pêndulo de incêndio
Não passa sem adendo
Estendendo o passo
Fora do compasso
Trêmulo contar de tempo
Correndo assaz
Socando o vento
No rastro aberto
E recluso que perfaz.
Salve a alegoria que vem lá
Dobrando a esquina da quinquilharia
Atravessando a rua reta
Tocando escondida
No horizonte atrás das casas!
Olha ela chegando
Toda em cima, agitando,
Com sua galeria dançarina
Corando a vizinhança
Extasiada a sambar!
Salve as plumas,
Salve as rosas,
A fantasia e o sabe lá!
É bom saber nada de enredo
E na festança se enredar
Barulhando passaredo
Nos ouvidos apitando
E nos pés degringolar!
Salve, salve alegoria!
Quem pudera todo dia
Ver passar a alegria
Atropelando o mal-estar!
Mas é lei que findaria
A bonança em romaria.
Conquanto vai-se embora
A melodia do agora,
O silêncio e a tristeza
Fazem parte de sambar.
Quais querelas
Qual velas
Queremos sem saber
Quaisquer delas
Queimadelas
Que fazemos sem querer
Quebram nelas
Caravelas
Ventos de mazelas
Que não podem se escolher
Empurrando às portelas
Quebradelas
Que caímos para ser.
A casa que tanto abrigou minhas melancolias
Hoje parece-me estranha.
Saiu do lugar e partiu à nevasca.
Vejo pela janela as placas de rua artesanais,
Os pinheiros esguios e flocos de neve
Dependurados em galhos secos
Assumindo uma cor rosada, fingindo ser botões.
Há ainda umas samambaias espiando escondidas na ilusão,
Uns coqueiros migrados tentando entender
A alvura do chão.
Mas sobremaneira me arrematou a jornada de inverno
E de resto aqui estou.
Um chalé repentino nos Alpes
Cercado pela escuridão de florestas
Num misto desnudo e pinhal.
Nada me é natural.
Onde, samambaia, foi parar minha terra cabal?
Não posso com esse Natal medieval,
Essa cruz exposta em risco sobre o vidro.
Sou anti-cristo... Anti-cristo demais para isto.
Volta-me, Mefistófeles, à rua da minha vida;
Faz sumir a agonia desses ares arredios,
Condena-me novamente à sofreguidão do sol.
Põe, ao menos, a imagem da Virgem
Embaçada na vidraria;
Que eu toque seus lábios até apagarem
No sopro de meus ansiosos pulmões.
Volta, bananeira, do teu funeral.
Sai da brancura sepulcral,
Estende suas folhas e deixe que as toque.
Mas como? Como aqui vim parar
Junto aos restos apagados do meu tropical
Embalado na neve e no gelo externos?
E assim, como súbita, vem a gangrena
E o sono vadio,
Tão perfumoso em seu chegar.
Com eles, a samambaia
E um alívio -
Mesmo sabendo delírio dentro do delírio,
A jornada chega a seu final.
Estou hambriento,
De ambiente lento,
Alambrado alento,
Desatento ao movimento,
Desafeto.
Tento, tento, tento
E só me alimento de vento.
Tivera um fragmento do teu sopro
E eu sem mais momento
Devorava o ar
Sedento que estou.
Sedento...
Sedento...
Hambriento por dentro.
Cabe no quadrado sol pintado
Atravessado no meu quarto
Uma boiada prateada;
No feixe, na espada,
Na poeira esvoaçada
Rodando cascos de luz.
Há quem veja na manada
A corredeira amansada
De si boiando iluminada,
Ceifada num coice de sol.
Meu tão veloso dizer
Salpica fugaz
Um numinoso prazer
Sem ser mas ter
Numa parte do corpo
Um doer luminoso
Que...
Não. Não posso dizer.
Ter no pescoço um poço,
Na língua um osso
E o fosso escuro
Repleto de meias palavras,
Metáforas santas
Que o esqueleto tão humano
Não ousa querer.
Tenro sofrer
Quasidivino
E terreno demais para crer.
Prefiro estender a dura língua,
Pingá-la na tinta
E ver no papel escorrer
Uma forma profana de versos.
Aí, então, posso saber
Que falei de amor.
Faz frio aqui, amor,
Na pele desnuda e praieira;
Um frio tropical
Entrando nas frestas
Do meu calção, da camiseta,
Esgueirando os pensamentos
Que quanto mais frios
Mais efervescem,
Como queimar em gelo,
Mas em fino ar.
Eis aqui um corpo frio
Que, como diz o poeta,
Perdeu o ridículo de amar
Em cartas ou sei lá.
Voltou à insipiência
Da adolescência
Mas sem paixão.
E pode ser, então,
Que seja ridículo,
Mas de maneira
Tão corriqueira
Que se contradiz.
Esta era para ser
Uma carta de amor
Ou saudades
E no entanto fria como está
Só pode ser de maldades
Mandando tristeza embalada
Ao som de cartas de outrem
Que talvez possam lhe sustentar.
Ou ao menos sustar a incerteza
Do que lês numa tentativa
De te assegurar algo mais que frieza,
Queimar-te com o amor
Mesmo gelado e roubado
Que quis enviar.
Ele estava ali cadente,
Encoberto, a cabeça
Levemente recostada.
O peito aberto, como
Raramente costumava se
Deitar, olhando o teto
Quasilonge contornado
Pelas luzes da janela
Cortinada, e quase
Nada. Um relento
Respirar. As mãos,
Então, já levemente
Começaram a formigar.
A escuridão passou
A se intensificar,
Misturando um fim
Do teto com a vista
Sonolenta e um dormente
Apagar da mente
Que foi, sabe-se lá
Se à luz de um
Pós-poente, se a um
Estado consciente liberado
Ou um discreto sussurar.
Não importa. Importa
Que ficou um corpo
Ausente, diferente de
Nós outros, muito
Pouco para sequer
Confabular sobre os
Fins que se fazem de
Repente, inconsequentes
E inconscientes parecem
Descomeçar.
Prosopopeia
s.f.
1. A epopeia da prosa; o caminho por onde a ideia entrosa.
2. A centopeia charmosa que serpenteia ardorosa.
3. A teia ardilosa; a ceia conflituosa das aranhas nervosas*.
*Aranhas nervosas: conexões neurais, ou só palavras em poesia polvorosa.
Malditos são os papéis
Desenhados em mim
Do mundo - as pessoas.
Maldito o mundo
Desenhado em papéis-pessoas
No palco de mim.
O feitiço inevitável de mim
Entornando poções nos corpos
Da mentalização e dando-lhes vida,
Uma vida amorfa,
Minha neles.
Mas benditas são as pessoas
Que estilhaçam a minha hipnose
E enxertam na mente uma dose
Do mundo que são.
Mesmo que seja um instante,
Uma descarga de realidade
Queimando os arquivos
Da minha construção
Somente para das cinzas
Erguer-se de novo,
Nova a encenação;
Mesmo assim benditas.
E benditos os momentos
Da emoção de redescobrir.
Chega desses amores-perfeitos,
Disse-me Rosa.
Aqui está um copo de leite.
Beba e vá plantá-los,
Ordenou derradeira.
Se parar para pensar,
Na verdade foi bem sorrateira.
Veio olhando torto as flores que eu escolhera
Há tempos, cada vez mais.
Desdenhou-as pacientemente
Até murchar seu jardineiro.
Quero pensar esse jardim
Tão meu quanto dela,
Mas ela desfaz os floreios de revolução
Que brotam proletários na minha mente.
Por fim, é dela. Ela sempre venceu.
E os meus amores-perfeitos
Foram dando lugar aos copos-de-leite.
Agora depois de todo orvalho
Pingam gotículas pelas pétalas leiteiras
E molham o adubo sem cerimônia
Onde antes brilhava o chuvisco
Sobre as minhas perfeitas.
Virou todo dia do jardineiro
Um amargo gosto de leiteiro
Deixando escapar uma lágrima
Por cada amor verdadeiro.
Marília, minha filha,
Escute bem.
Deixo aqui uns versos
Pois de resto não se aprumam as palavras
E o gesto que desejo não lhes vem.
Espraia a maresia,
Ora às matas, ora às ondas,
Rolando nela a dor e a alegria.
Na vida uns escolhem ser das águas
E afogar suas mágoas
Navegando numa longa romaria.
Outros preferem ser das terras
E enterrar seus males
No acampado chão da pradaria.
Teu velho também pensou
Ser uma decisão a vida
Entre a costa e a enseada,
Mas não soube a qual pertenceria.
Agora, como espectro de poeta
Levitando à deriva na brisa,
Pensa ter descoberto em sobrevida
O segredo de sua sabedoria.
Se servem, Marília, estas palavras
De conselho que decidas pro teu bem,
Faz delas um bote e uma choupana
Sazonal, como o tempo te convém.
Medita, Marília, o pensamento mais insano
Aquilo que te faz um ser humano
Decano das tuas horas,
Sacerdote do teu plano.
Medita o sacrifício em teu altar
O feno que forma o teu subterrâneo,
Descobre o teu segredo mais profano
E o pano que te oculta como véu.
Então, com vista limpa como o céu,
Verás que és um mar mediterrâneo
E uma ilha pequenina no oceano.
Sinta agora o som do teu tambor
Titubeando a linha do horizonte
No deserto chamuscado dos teus sonhos;
Mergulha nessa areia líquida,
Enterra-te em seu caldo obscuro
E saiba, Marília, que isso tudo
É uma só coisa sob a brisa movediça.
O periódico alegórico
Da minha mocidade está passado.
Alegre sub-ótico manchado
Desfoca na cidade,
Aloca um mêlée no meu Estado -
A sabinada dos meus olhos errados.
O meu refluxo auricular
Jorrando revertério na calçada
Pintando musicado no despótico
Prazer de fazer nada.
E cai minha visão desenganada
Suspira a audição sua última tragada
A cada rouquidão asfaltada
Na cidade deformada
Ao som do meu carnaval.
Eu sou esse canteiro colorido
De cores escapadas do contorno.
Eu sou o cinza claro do florido
Periférico fazer da minha mirada.
Sou de caiaque e remo
O rio caiado
Sou cacique do meu fado
Sou de caiaque e remo
Um cajado,
Meu cacife bem forjado
Sou de caiaque e remo
No calado
Pau-a-pique estiado
Sou de caiaque e remo
No recife...
Deus! Recife! Meu cacife é forjado!
Sou de caiaque e remo
Onde está o meu cacique?
Meu supremo? Está calado!
Sou de caiaque e remo!
Se sou caiado
Como resto em mar quebrado?!
Era caiaque e remo
E cai aqui nesse recife
Nesse estado.
Quero escrever sobre o passado,
Mas o presente não perdoa.
Não doa telas limpas
Onde eu possa pintar.
É um poderoso patrono
Esse presente;
Sabe sempre dar um puxãozinho,
Um retoque prático,
E consegue o que quer.
Mas não me acanha esse tacanho.
Vou alto no imagético,
Expandirei o tempo
E talvez arranhe no trajeto
Um Panteão secreto
Um Pavilhão Dourado
Onde o agora faz-se abjeto
E resta andar por outro chão.
Um de tábuas mornas,
Ladrilhos de madeira
Cujo nome foge
Na pequenez do meu saber.
Seu encaixe é um mágico
Tapete em ziguezague
Onde às vezes se destaca
Uma peça meio solta.
Se puxar com o dedo ela escapa
Revelando suas faces menos lisas,
Que não foram brilhadas.
Eis aí uma relíquia
Que o tempo não me rouba:
Os dedos acanhados
Na imensidão da sala
Surrupiando uma esmola,
Um pequeno grão de espaço,
Onde possa me agarrar.
Devemos tomá-las sem receio.
Aprendi isso na casa dos avós,
Aquela primeira,
Onde agarrávamos a cerca do quintal
(As grades onde hoje nem me passa a cabeça)
E rodávamos feito cipó.
Aquele espaço cinzento
Onde, acho, ralei o joelho,
Era miúdo, mas dava para brincar.
E ali na frente uma velha árvore.
Não lembro quais seus frutos,
Mas era trepadeira dos outros
Onde nunca vi coragem para escalar.
Subir nunca foi meu forte.
Já morei em casas altas rumo ao céu
Com varandas cujas bordas bamboleiam.
Nessas agarrei-me mais que nunca
Temendo o "lá embaixo"
Espreitando tubarão.
Assim como gelei frente aos mares
E sentei ali na areia
Agarrado ao mole chão.
Ali peguei um punhado de amarronzadas
E as deixei meio escapando
Nas ondinhas que chegavam
Ousando terra adentro.
E assim mesmo atravessei
Pelo templo desgarrado
Das lembranças que agarrei
E novamente se escoaram
No presente me chamando
Esquecendo onde findam
As memórias que talvez nem são.
O que sou para ti, poesia?
Um pedaço? Um frasco?
Um resquício amorfo do teu percalço
Aglutinado na sombra do tempo
Bebendo da tua fonte
Somente quando me esbarra
Um beduíno transeunte
A procura de um oásis?
És minha casa.
Pousada. Descanso.
És o destino das minhas eternas viagens,
O desejo das minhas miragens.
O vinho do qual causo embriaguez,
O ritual de invocação em que me comprazo.
És a sorte que me alcança,
Fortuna domadora da minha paixão;
És meu amante e meu atraso,
Enquanto paro nas horas do dia
E me aconchego no teu abraço.
E tu, poema, que pensas de mim?
Sou-te uma deusa misteriosa?
Uma ninfa fugaz, descompromissada,
Andarilha perniciosa?
Sou mais que um botão de rosa
Que desabrocha, falseia e desgarra?
Passo de chuva que te umedece
E apaga ao sol, perdida no espaço,
Esquecida até a sede provocar teu anseio?
Tu, poesia, és meu encalço.
És minha crença, minha prometida.
Se és divina, és por mim conhecida.
Sei das tuas trilhas e dos teus passos.
És meu abraço,
O mesmo calor com que me faço
Servinte, fiel e amasso.
És a paz que me chama,
Mesmo à distância e no mormaço.
És as estrelas que pairam longínquas
Mas cujo brilho é certo e constante
Até nas noites mais solitárias.
És o vício máximo
Naquele momento em que chegas
E eu, caído aos teus pés descalços,
Sei que, mesmo oposto conjunto
Contraditório ao mundo,
Somos.
Lá vem aquela velha brisa passar.
Lava minhas penas ao som das hélices
Metralhando meu flutuar,
Mas mergulha nas minhas entranhas
E como lava ardente,
Sarça que não quer queimar,
Varre minhas vias lisas
Até delas algo plumejar.
Nas nuvens, pois, amansado
Floreio por dentro um grosseiro espinhal
De penas avessas, com suas pontas agudas
De folhas a esverdear.
Ai, como dói essa beleza alada
Planando num fogo espesso,
Mas leve o suficiente para semear
As rasuras de caule que arranham,
Aranham meu esôfago
E labirinteiam o meu respirar.
Não sei quanto do belo e quanto do horror
Aqueles que por perto passam
Olhando esse bicho de asas, de brasas
E folhas noviças entrelaçadas
Conseguem enxergar.
O que pensam do semi-astro
Pairando no céu, soltando chumaços
De penas, galhos e fogo
Que vão caindo, caiando os ares
E se consumindo até sumirem
Como se fossem uma simples miragem.
Talvez nem me percebam lá
Ou me confundam com um resquício de poluição.
É possível, aliás, que estejam certos.
E aí o que creio assombro magnífico
Não passa de vaidade
E as duras penas que a todos impõe essa vida
Nessa cidade.