Muito se tem falado acerca do polêmico projeto de Decreto Legislativo Nº 234 de 2011, que visa sustar a aplicação do parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1 de Março de 1999, que estabelece nomas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual.
Os trechos a que se refere tal Projeto possuem a seguinte redação:
"Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4º - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.”
De acordo com o Deputado João Campos (PSDB/GO), autor do projeto, o Conselho Federal de Psicologia extrapolou o seu poder de regulamentação "ao restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional", além de usurpar a competência do Poder Legislativo "ao criar e restringir direitos mediante resolução (...), incorrendo em abuso de poder regulamentar". Ele afirma que "o dispositivo questionado inova a ordem jurídica, ilegitimamente, pois cria obrigações e veda direitos inexistentes na lei aos profissionais de psicologia, em detrimento dos direitos dos cidadãos, ofendendo vários dispositivos constitucionais", e termina dizendo que "a competência [do CFP] para expedir atos regulamentares (...) ou recomendar providências não pode ser compreendida como competência para complementar a Constituição Federal, muito menos como competência para inovar no campo legislativo".
Creio que toda a interpretação técnica dada pelo senhor deputado incorre em graves erros de argumentação, falhando em defender sua proposição. Ademais, as falhas lógicas de tal exposição delineiam, para além do incorretismo, a inconstitucionalidade do projeto, tendo em vista que os conselhos federais de fiscalização de profissões regulamentadas não estão sujeitos à tutela da Administração, como salientou o próprio CFP em nota posicionando-se em relação ao PDL 234/11.
Vale ressaltar também que o mesmo CFP enviou à audiência pública da Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados sobre o referido PDL uma nota de repúdio, em que denuncia o falso debate de cunho unilateral da iniciativa, havendo na mesa de convidados apenas uma pessoa contrária ao projeto. Acrescenta-se a isso a contestação do Deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) à presença dos senhores Silas Malafaia e Marisa Lobo neste seleto grupo, sendo ambos notórias figuras religiosas que, apesar da formação em psicologia, jamais escreveram sequer um artigo científico, sobre homoafetividade ou qualquer outro tema. É gritante o envolvimento de setores fundamentalistas no projeto, e isso não pode passar batido quando estamos discutindo não só seu embasamento, mas também seu propósito político e social.
Afirmar que a Resolução do CFP restringe o trabalho dos profissionais, e que isso ilegitimamente veda direitos inovando a ordem jurídica, é absurdo. A função do Conselho é justamente dispor sobre aquilo que é considerado conduta profissional ética. É tido como antiético, no meio acadêmico e nas principais instituições de medicina, psiquiatria e psicologia do mundo, inclusive a Organização Mundial da Saúde (OMS), o tratamento da homossexualidade como doença ou desvio de comportamento sexual. A homossexualidade foi retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID) em 1990, o que (a despeito das confabulações de Marisa Lobo, que afirma tal ato ser resultado de mera votação, destituindo a iniciativa de caráter científico) reflete o entendimento amplamente aceito na comunidade científica de que a homossexualidade é uma manifestação natural da sexualidade humana.
Além disso, a regulação da atividade profissional não inova a ordem jurídica através da criação de obrigações e vedação de direitos de forma a usurpar o poder regulamentar do Legislativo. Para tal, teria que dispor dos mecanismos coercitivos estatais, a saber, o sistema penal. A máxima sanção que um conselho profissional pode promover é a revogação da licença. Ora, é esperado de um médico que siga as instruções éticas do Conselho Federal de Medicina, e qualquer comportamento que seja considerado anti-profissional será naturalmente sancionado. Isso não significa que o indivíduo está sendo privado de direitos, mas sim que, enquanto praticante de profissão regulamentada, deve responder aos princípios que regem tal papel social. O mesmo se aplica, naturalmente, ao psicólogo.
Quanto ao direito da pessoa de receber orientação profissional, não há nada que o restrinja, como bem salientou o CFP na já citada nota de posicionamento:
"Da leitura da Resolução nº 001/99, constata-se que, bem ao contrário do que sustenta o autor do PDL 234/2011, o CFP em momento algum veda a prestação de orientação profissional aos que pretendam voluntariamente alterar sua orientação sexual. O que se veda é que a(o) psicóloga(o) preste os seus serviços de modo a tratar ou prometer cura da homossexualidade, pois conforme exposto acima, a homossexualidade não é uma doença".
No mais, é interessante notar a tentativa de normatização sexual subliminar ao texto do projeto, em outras palavras, a presunção da heteronormatividade. Como bem notou Lucas Passos em uma análise profunda sobre o assunto:
"Que 'alguém' pode reorientar sua identidade sexual no âmbito de um tratamento psicológico, parece desde sempre problemático. Mas o fato é que, inquestionavelmente, reorientar-se é reorientar-se para a heterossexualidade, para a norma e o normal, é ser normatizado, dado que, no âmbito da nossa sociedade heteronormativa, é o homossexual que busca ser reorientado e o heterossexual não. Se Preciado (2002) já nos fala de formas políticas de censura sexual, ao tratar das operações performativas de intersexos e transexuais, poderíamos dizer que o jogo estratégico de reorientar um homossexual para a heterossexualidade faz parte da censura da identidade sexual, um tipo de cirurgia de re-designação da identidade sexual (a heterossexualidade) a que um 'eu' tem que ser submetido (...)".
O projeto, afinal, é uma clara mostra de setores conservadores da sociedade, incapazes ou indesejosos de aceitar a diversidade sexual e identitária da comunidade humana, utilizando-se de pretextos esguios e argumentações sinuosas em busca da manutenção de um sistema excludente baseado em posicionamentos religiosos ineptos de convivência com o diferente. É óbvio, explícito, para qualquer um que visite o assunto, que a chamada "cura gay" não passa de proselitismo religioso, defendido apenas por aqueles ainda imersos em interpretações fundamentalistas da vida. Vida, infelizmente, não só dos que pensam assim, mas também de todos nós, especialmente aqueles que, sem forças ou conhecimento para lidar com o preconceito de nossa sociedade sexista, cedem às suas falácias.