quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Eu que ti

Eu que te busco
Cego
Feito errante ineterno.
Eu
Que te quero
Quem sejas
Ensejando
Ereto
O monolito de ti
Feito leitura inerte da História
Enganando-me sobre a parte
Macia
E às vezes concreta
Dos meus pés
Que desejo entrelaçar em ti
Quem quer sejas
Inoportuno e inexistente
Como tu... Ai,
Como tu és -
Tão ofensivo esse verbo
Que te obriga a existir
Conquanto não te obrigo a nada.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Cântico dos Cânticos

Hoje entendi todos os versos eróticos
Dedicados a grandes amores
Desde os Cânticos de Salomão.
Culpa da tua boca,
Que me sedou com a maciez desses lábios
Cobertos de um elixir oleoso
Que escorreste para dentro de mim
Plantando-o com a tua língua
Delicadamente na minha.
Assim me alimentaste;
Depois me recobriste dessa magia
Por todo o corpo
Fazendo-me uma camada protetora de saliva
Sobre a pele que derreteu na cura.
Me fizeste teu, encasulado num banho de alegrias puras
Que já não sou capaz de esquecer -
As asas me serão inevitáveis.
Mas disso tudo sabes... Tu sabes que hoje te pertenço.
A poesia de Salomão é completamente desnecessária
Para te dizer qualquer coisa -
Entre nós não houveram silêncios nem dúvidas;
Soubeste desde o princípio que te devoraria
E eu também soube que me comias com o olhar.
Pois, então, me coma:
Estes versos de que te sacio,
Por mais que desnecessários,
São os frutos que flori de tu inseminado em mim.
Esta é, afinal, a natureza dos homens
Quando chega a primavera.
E como é bom que chegaste...

sábado, 7 de dezembro de 2019

Poema Pacificado


(Trixie Smith - My Daddy Rocks Me)

Devo me desculpar:
Por ti ainda não pus
Versos no papel.
Mas, feita esta penura,
Eis remendado o erro.
E justifico:
Você me dá paz,
E a caneta só me costuma tecer
Quando algo me adoece;
De ti o que conheço
É um carinho de silencioso aconchego –
Pra que vou querer compartilhar
Com o mundo esse eu contigo?
Esse quem sou no teu encanto
Não precisa ser poeta –
Ele se contenta muito mais em ser outras coisas:
Um escritor mais prolixo,
Mais rico de sentimentos por dentro
Para de outras formas se confessar.
Mas entendo a ironia
De um amor sem poesia,
Quando tudo que sempre se quis
No mundo (e talvez em mim)
Foi casá-los como se fossem necessárias
As formalidades do complemento
Para um ao outro respirar.
Portanto, eis aqui tecidos
Com muita calma e sinceridade,
E nem por isso com menos afeto,
Os primeiros versos de ti
Que recebas, espero,
Com o mesmo sorriso tranquilo
Que sempre me reservas
Ao fim dos turbulentos eventos do dia.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Pequena estupidez de mim


(The Stephane Wrembel Trio - Big Brother)

Eis aqui enumerados
Os motivos pelos quais
Devias me amar:
Em primeiro lugar,
Tu.
Tu és interessante demais
Para te deixares
Empoleirar tão rápido
Nuns galhos nus
De pouco espaço
Como esses em que costumas
Te acostumar.
Depois, eu:
Se tivesse que te confidenciar,
Eu seria muito mais crível
Do que essas crenças
Nas quais tu costumas te confessar.
Eu seria uma religião
Bem mais profunda
Para te arraigar.
Eu te enganaria
De enganos mais puros
Que não mentiriam
Mentiras estúpidas
De pequenez rotunda
Formadas nas psicologias do dicionário,
Como as que preferem
Te acontecer.
Eu te arremeteria
De curas
Mais gostosas
Do que as doenças que te acometem –
Eu te sararia mais que os saraus
Das poesias que a ti costumam remeter.
E, em terceiro lugar...
Tanto faz os terceiros
A essa altura já não importam entre nós.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

A Runa

(Nancy Sinatra - Bang Bang)

Perdi os escritos da razão
Nalguma runa
Mergulhada entre as dunas
Da minha estranha pulsão.
Algo me diz
Que o desterro de mim
É um caminho de perigos
Que talvez não tenha fim.
E se tiver...
Ah, se tiver!
Ai de mim,
Que me perderei em luas cíclicas
Até os pés firmar
Num sonho tão impossível
Que a realidade jamais poderia sonhar!
Ai de mim na loucura,
Que a sanidade hoje não é capaz de me uivar.
Ai de mim nos ventos esguios da vida
Que me trouxeram
A miragem deste errante oásis
Abalando a paisagem
Que me pintei.
Ai dos meus dias contados
Descendo a ampulheta
Na areia que sob os meus pés se desfez
Deixando nua a constelação
Debaixo do mundo
Forçando-me a um sono que não é meu;
Fazendo dormir o que se me viveu
Em nome de um estado escuro
Que se me converteu.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

RiTUal

(IZA - I put a spell on you)

Você
Me padece
De intoxicação fulminante -
De fumaça inebriante
Queimando a respiração.
Você
Me parece um Dalí Monetizado
Que floresce por todos os cantos
Dos meus sonhos tresloucados.
Você
Me apetece -
Tenho uma fome de ti
Que as multidões não saciariam;
Eu te devoraria
De boca cheia
Para aplanar o voo
Das mariposas me formigando no estômago
Com o afinco do fogo.
Você me aparece
Em visões na lareira
Dançando entre as labaredas,
Torrando-me em cinzas,
Queimando minhas mãos,
Cegando a minha visão.
Você me enlouquece tanto
Que grito num pranto de morte
À vida
Exigindo que ela comporte
O que em mim já não cabe -
Eu preciso que o mundo acabe
Se eu não te tiver por completo
Na cama, no quarto, na sala de estar
Para te olhar no fundo dos olhos
E ali ressuscitar.

domingo, 24 de novembro de 2019

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Cordel do Garimpo

Salve, salve, meu amigo!
Sou feliz por te encontrar!
Vem sentar-te aqui comigo
Que uma história eu vou contar.
Já conheces este conto,
Mas o sabes por um ponto
De visão bem singular.

Esta prosa é do garimpo
Lá nas matas da Amazônia.
Tens o teu coração limpo
Para ouvir de forma idônea
Da vida do garimpeiro,
Feito um eterno estrangeiro
Desde os tempos da colônia?

Talvez tenhas estranhado
Meu suposto romantismo,
E questionas: "tens lembrado
Todo o fogo e o racismo
Que o garimpo utilizou?
Será que se suavizou
Perante o capitalismo?"

Nada disso, te garanto!
Sei de todos os problemas
E dos índios todo o pranto,
Mas perceba que os esquemas
Do capital são complexos:
Os seus feitos e reflexos
São repletos de dilemas.

O que tu vês são queimadas
E homicídios sem piedade,
São terras desflorestadas
E rios sem vitalidade!
Vês a ganância que ataca
Com mercúrio, tocha e faca
Só por ouro; só vaidade.

Teu olhar é verdadeiro,
Nisso tudo tens razão.
Mas, mirando o quadro inteiro,
Verás a população
Numa condição precária,
Uma elite mercenária
E o Estado em omissão.

A cidade de Altamira,
Na fronteira do desmate,
É um exemplo dessa espira
Que deságua no combate
Entre índio e garimpeiro
E sem-terra e fazendeiro,
Não havendo lei que os trate.

Ali fica Belo Monte,
Bem na curva do Xingu,
Consumindo toda a fonte
Do rio, feito um urubu.
Deslocou já muita gente
Dessas águas dependente
Pois deixou seu leito nu.

Eram povos ribeirinhos
Ou pequenos fazendeiros
Que do rio eram vizinhos,
Tal qual os índios pesqueiros -
Gente tão apequenada
Frente à usina agigantada
Dos desmandos brasileiros.

Na cidade em despreparo
Para tanta multidão,
O problema fica claro:
Dobrou a população
Que na fome e na miséria,
Como a pesca é deletéria,
Sobrevive de sopão.

Buscando oportunidade,
Muitos recorrem à mata
Vendo em sua enormidade
Farto ouro e muita prata.
Mas a técnica empregada
Quase sempre tem queimada:
Curto prazo, mais barata.

São também estimulados
Pelos latifundiários
E empresários abastados
Nos atos incendiários -
Afinal, o fazendeiro
E o grande setor mineiro
São quem leva os lucros vários.

Nessa luta por vivência,
Olhos caem sobre a terra
Dos índios em florescência.
Com trator, corrente e serra
O conflito é preparado:
Onde outrora demarcado,
Hoje jaz sangrenta guerra.

Mas, que fique registrado,
Há quem tente a licitude:
Pedido protocolado
Por suas terras com virtude.
E no entanto esses processos,
Há já décadas ingressos,
Se esquecem na solitude.

Veja então, meu caro amigo,
Como é complexo esse tema!
Não se resolve o que digo
Com simples estratagema -
Só um projeto de país
Que remexa na raiz
De tudo quanto é edema.

Pois aqui nesta nação
Tudo é muito estrutural;
Toda a edificação
Do Brasil é desigual.
Quer no campo ou na cidade,
Toda a nossa sociedade
Sofre deste grande mal.

sábado, 16 de novembro de 2019

O Arremeter

Não preciso te avisar
Que estes versos são para você:
Sinto que daí onde está
Você já entendeu.
Por aqui
Tudo já aconteceu
Mesmo não tendo acontecido
Mas, você sabe,
Está esperando acontecer.
O tempo está só aguardando
O arremeter das nebulosas
Furiosas
A verter no espaço
Constelações inteiras
E com elas os planetas
Orbitando a mil maneiras
No ímpeto das prosas
Mais misteriosas
Que o silêncio e o vazio
Do infinito
Poderiam escrever.
Por aqui todo o universo
Está já se fazendo
Num grande rebuliço,
Esferando o movimento
Em que nos converteremos -
O cosmo é feito dessas colisões impossíveis
Pedindo para ocorrer.
Você bem sabe
E ainda vai saber...

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Envergadura

Me desculpa, mas preciso te dizer
Que não vou ser
Outro ser nesse teu jogo
De se perder,
De envergar
O tecido vernacular
Da minha essência irregular
Pelo teu bel prazer
De fazer
Desencontrar o mundo inteiro
Na tua estrada
Contigo perdida
Só pra te encontrar.
Você vai ter que perdoar
A minha aflita intolerância
Com o intolerável
De me machucar
– Ter que perdoar
Se te machuco
Tentando esse caminho evitar.
Você vai ter que me escutar,
Que desse jeito não tem jeito,
Eu vou ter que te deixar.
Pode ser que eu não conheça
O jeito certo de lidar as coisas –
Pode ser que jeito certo
Nem se possa afirmar –
Mas assim como está posto,
Desse jeito não vai dar.
Pode ser que eu seja cego
E tentando tatear
Eu esteja caminhando
Um caminho igualmente irregular,
Mas garanto que a cegueira do meu mundo
Não rodeia torta à toa
Desse jeito que te dói.
Te garanto, o jeito que se me doa
Dói bastante,
Mas, diverso de você, não se destrói.
Se quiser dar uma volta
Eu rodopio aqui contigo,
Mas deixa, então,
Meu passo torto te guiar
Só um instante
Que eu te levo numa dança
Mais gostosa de dançar –
E se não quiser não tem problema:
Passe bem,
Desejo que você se encontre
E possa um dia
Chamar alguém pra um movimento
Que balança mais gostoso
Sem pisar em tanto calo
Nesse embalo de rodar,
Que é bonito, te garanto,
E tão bom de admirar
Nem que seja aqui de longe
Sem te atrapalhar.

domingo, 10 de novembro de 2019

Sua

(Juan Serrano - Gorrion)

Meu corpo escolheu se escaldar
Pelo teu.
E eu?
Eu renego o controle;
Permito que tomes o meu calor,
Que te aqueças no fervor dos meus braços -
Deixo que os laços se ajeitem
Naturalmente
Nos leitos que escolham deitar;
Deixo que a seiva me escorra
Contando da luz a me alimentar.
Deixo que a pele se queime,
O nervo incendeie,
A musculatura derreta
E os ossos tremam,
Que quando minh'alma sua
Desnuda
Ela inunda os canais
Pelos quais me navego.
Eu me permito desgovernar
Pela Revolução que me reformo;
Eu me democratizo contigo
Pois o teu domínio
É tentador demais
Para não me devassar
À utopia.
E agora -
Que fazes, então,
Com a excessiva entrega
Que meus lábios escorregam sobre ti?

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Se Isso For Tudo

De que serve
O verso de amor
Se versado sozinho
Amado em pergaminho
No arrasto das ondas
Engarrafado
E enviado ao desconhecido?
De que me vale
O silêncio da carta de amor
Que sequer à dor
Dos amores mortos
Se encaminhou?
Eu desconheço a fonte
De tanta vida,
Tanta alma minha
Embrulhada num corpo de simples caneta
Que vaza, e vaza, e vaza
Ensopando as folhas,
Fazendo-as o próprio mar
Azul de letras
Endereçado às encostas de todo o mundo.
Vale-me tanto o rio
Que cavo entre os montes
Fluindo em furor
De águas profusas
Brilhando a me constelar?
Vale-me... Vale-me fundo!
Vale-me até o núcleo duro
Que perfuro, atravesso,
Arrebento, oblitero
E reúno
A cada verso,
Cada universo que lampejo de amor!
Vale-me qualquer amor,
Todo amor que me queira tragar
E apagar.
Apago-me como as estrelas
Que brilharam por uma eternidade
Na escuridão vazia;
E se isso for tudo,
Isso basta.

sábado, 26 de outubro de 2019

Ágora

Agora
Sou carmim.
Agora, apenas.
Pois sou ágora de Atenas –
Eu me encontro
E desencontro
Transcorrido de gentes
Carcomido de tempos
A me agorar.
Agora escorro do agouro vermelho
Que o oráculo derramou
A me profetizar
Tingindo os degraus do grosso caldo
A me banhar;
E saio remido
De mim.

domingo, 20 de outubro de 2019

Desalmado

Que beleza é essa que enxergam em mim?
Eu sei o que é...
Eu entendo o belo que exalo;
Conheço o cheiro das emoções
Que abalo.
Sei perfeitamente o labirinto
Que falo
E as minhas monções.
Eu sei o que sou,
Sei o que controlo,
Sei o que calo
E os montantes que rasgo
No meu ser
Para verter os sonhos do mundo
Em estalo sísmico.
Mas a beleza não se me é
De puro bom grado.
Queres me saber de fato?
Eu sou a lírica unção do vazio;
Sou a montanha sem topo nem fim
Que escalo em busca de mim;
Sou peixe e nado
E em nada comprazo meu seio
Além da desova
Do que foi almado.
Eu sou o pranto galopante
Arrastando no vento
Em tamanho silêncio
Que o meu desalento
Será sempre calado
Pelos redemoinhos que o próprio sopro
Rodopia em seu traço;
Eu sou a frieza
Do poeta
Que no estado mais efervescente
Amou
Sem ser amado.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Corpo Alado

(Troye Sivan - Lucky Strike)

Eu não sei explicar o que li nos teus movimentos.
Parece que vi tua visão
Num relance do pulso batendo em ti.
Parece que me enxerguei através de ti.
Quando flagrei teus olhos caindo em mim,
Me senti por um instante alado -
Almado de corpo inteiro,
Encarnado finalmente em mim;
Parece que me reconheci.
Quando encontrei teus olhos fugindo dos meus,
Me vi no teu escorrego
Tão típico de mim.
Parece que alguém me entendeu, enfim.
Quando te vi dançar
Entre o corpo solto que se lança
E o receio do que balança
Entre os olhos do salão,
Parece que me entendi.
Confesso que por um instante te amei.
Confesso que até me soltei por um mundo inconcreto
Onde as almas aladas se pertencem
Silenciosas e independentes.
Confesso que me encantei
Por essa fusão de nós
Que só se passou em pensamento -
Que se passou pelo imenso cosmo do pensamento.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O Ancoradouro

Recuso.
Preciso recusar.
Eu não reúso esses passados
Tão ancorados no naufrágio
Que já verteram em recife
De beleza in natura
Por sobre o velho metal.
Recuso. Recuso!
O cemitério não é meu adubo
Mesmo que lá deposite flores
Pelo meu antigo amar.
Recuso que se valha
A minha malha
Das agulhas do velho tear.
Prefiro que me morra
A melancolia amorosa
Se for pairar como espectro,
Adepta da vida em sono
E um profundo esperar.
Rechaço! Desfaço! Desuso
Todo sentimento espúrio
De apego paranormal
Que não me permite outro fuso
Onde o tempo me seja banal!
Recuso o tempo perpétuo
Que não traga nas suas entranhas
O calor do anti-tempo
Que anuncia o temporal.

domingo, 22 de setembro de 2019

A Espiral da Utopia


Eu sou todo feito de paixão e encantamento.
Eu sou o movimento no salão dançado desatento
Que tropeça e rodopia guiado pela mão
Da utopia em clarão,
Como aparição de Cristo,
Como a peça que insisto
Em viver dia sim, dia não.
Eu sou todo feito de viver e emoção.
Eu me revisto de entendimento
E até me afia o distanciamento
Que me tento em contramão,
Todavia o meu talento
É amar em melancolia.
A fina bruma que me guia
A passos lentos pela dança
De seguir feito criança
Na alegria que me avança
É essa rima que refia
Sempre que me desaprendo
Dos limites da tensão
E dissolvo novamente
Na voz da repetição
Que me move silenciosa
Nessa prosa da canção
Dos amores sem remorso
E sem motivo
E sem caução.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

A Minha Paixão Por G.H.

Terminei de ler A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, semana passada. Costumava brincar que esse livro era a minha baleia-branca – o meu grande objetivo de leitura inatingido, talvez inatingível. A primeira vez que tentei lê-lo foi há uns cinco anos, e ele me deixou completamente apavorado. Acabou paralisando meu interesse por romances por algum tempo – foquei por mais de um ano em outras leituras (poemas, crônicas, textos científicos ou jornalísticos). Tudo isso porque eu sabia que eu era G.H.. Nunca me senti tão profundamente identificado com uma personagem – seus anseios e questionamentos. Sabia que quem estava congelada ali entre a parede e a barata no armário era eu. Fugi dali, deixando a leitura incompleta.
Acredito que essa identificação tem tudo a ver com a forma que Clarice escreve. E penso que cada um de nós extrai algo de diferente da leitura de um livro, mas isso também muda dependendo da época em que o lemos. Quando mergulhei pela primeira vez na Paixão, cinco anos atrás, eu era outra pessoa. Estava imerso num niilismo profundo, totalmente desiludido da vida. Ler G.H. aos poucos esmiuçando a insignificância de tudo escondida naquela barata me deu a certeza de que o final do livro me revelaria meu próprio fim – e eu não estava preparado para lidar com isso.
Talvez eu devesse ter atentado ao breve alerta que a própria Clarice faz a possíveis leitores antes de começar a narrativa: “Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.”
Pois foi exatamente por esse processo que passei ao longo dos últimos cinco anos. Aos poucos fui substituindo o “não existe significado inerente” do niilismo massacrante pelo “não existe significado inerente” do existencialismo das infinitas possibilidades. Talvez seja difícil entender a diferença entre esses conceitos, mas é porque é difícil mesmo: é uma mudança que se constrói apenas com o tempo e a reflexão. Entender que eles são diferentes na leitura não é o mesmo que sabê-lo dentro do seu corpo, com cada músculo e osso.
Demorei o que parece ter sido uma vida para chegar aqui, e ser ateu com certeza não facilitou esse processo. Quando acreditamos no espiritual ou no divino, temos ferramentas mais claras e diretas para criar significados, mas nós ateus rejeitamos todas elas, e portanto temos que criar nossa significação praticamente do zero. É uma jornada penosa e frequentemente falha, e a chance de ficarmos presos num niilismo cruel e depressivo é grande. Li certa vez que os hindus pensam que o ateísmo é um estilo de vida possível, porém difícil. Tendo a concordar com essa perspectiva. Frequentemente ridicularizamos aqueles que nos dizem que, pelo ateísmo, nada tem sentido. Dizemos que eles não entenderam nada. Mas no fundo esse questionamento também nos corrói, pois nós seres humanos temos uma obsessão biológica por significado. Acreditar que esses significados são coisas construídas, não inerentes, pode ter implicações psicológicas muito pesadas se não soubermos lidar com essa crença.
Mas, para compensar, quando finalmente conseguimos construir nossa significação, ela se torna tão intrinsecamente rica e pessoal que pode se mostrar mais bem preparada para lidar com as complexidades da vida do que outros significados. O que não quer dizer que seja o único caminho, nem mesmo o melhor caminho – muitos chegam nesse lugar por outras vias; e na verdade creio que poucos ateus realmente chegam a esse ponto. A maioria se perde no caminho das frustrações niilistas e o ódio aos modelos pré-montados de significação das religiões. Porém, a perspectiva verdadeiramente existencialista do ateísmo tem o poder de criar uma neutralidade empática para com os sentidos de vida dos outros. Afinal, se todo significado é uma construção – inclusive o meu –, quem sou eu para criticar a construção alheia?
Toda essa divagação, enfim, para dizer que finalmente vivi essa mudança nos últimos anos. Aprendi a lidar com a depressão, a enxergar minha compreensão do “eu” como uma coisa passageira, a ser mais flexível com as minhas crenças sem abrir mão do meu senso crítico; enfrentei minhas limitações e cresci. Obviamente ainda tenho muito o que aprender – a vida, afinal, não é uma linha reta com um objetivo fixo no final. Mas parece que entendi como ser quem sou, conforme os meus eus vêm e vão. A isso, creio, se dá o nome “alma formada”, para usar as palavras de Clarice. Agora estava finalmente pronto para enfrentar minha baleia-branca.
Ajudou também o fato de ter começado a ler a Paixão em meio à minha pior crise de 2019. Ficou mais fácil acessar aquele ponto baixo de questionamento de tudo em que G.H. se encontra quando confrontada com a realidade da barata. No entanto, curiosamente, dessa vez cheguei a ele não com a perspectiva de quem se aterroriza com a inevitabilidade do fim, mas intrigado pela possibilidade de descobrir se, como eu, G.H. sobreviveria. E qual foi minha surpresa ao vê-la escapar das garras do niilismo para passar ao conforto desagradável e estranhamente alegre do existencialismo?
Ainda pretendo reler essa Paixão outras vezes, pois este claramente é um daqueles livros que pode se revelar de inúmeras formas a quem deseja explorá-lo. Mas quis compartilhar essa história de transformação e identificação, sabe lá se por querer fazer uma ode ao meu livro preferido, se pelo desejo de falar das coisas que amo e me movem, ou simplesmente porque queria escrever e é isso que está na minha mente essa semana. Talvez esse seja apenas um registro da minha jornada, uma tentativa de estender a mão para explicar em que acredito, já que nós ateus somos tão frequentemente incompreendidos pelo restante da sociedade - um diálogo interno que resolvi externalizar. Ou talvez seja, enfim, uma exposição dos meus significados para que eles possam ajudar quem ainda está no seu próprio processo de significação a enxergar uma luz no fim do túnel; a saber que a vida não acaba aprisionada entre a parede e a barata. De alguma forma, em algum momento, a gente pode se descobrir e a partir daí se construir. E quando isso finalmente acontece, não tem outra forma de descrever: é realmente apaixonante.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Estranhamento

Seria muito estranho eu confessar
Essa entranheza curiosa
Que escondo entre palavras inventadas
E omissões confusas
De olhares difusos,
Protegido em mãos ressabiadas,
Fugidas dos toques
E eventuais rebotes do pensamento
Que tende a escorregar
Para um inventamento irregular
De realidades obtusas
Onde eu possa te estranhar
Com delicadeza,
Sem embrenhar a língua
Por passagens avultadas
De linguagem bíblica
E dissonância clínica
Recusando a se contar,
Recuando a te contar
Do meu ininterrupto
Interrompido pelo teu passar.
Seria emaranhadamente estranho eu me entregar,
E ainda assim eu me emaranho.

sábado, 7 de setembro de 2019

O Nada


Eu tenho medo da morte.
Mas não é um medo qualquer – é pavor.
Eu sofro do horror
De perder tudo que tenho
– A vida.
Talvez a frieza clínica de dizê-lo assim
Não esclareça as minhas palavras...
Devia ser poeta,
Mas luto contra algo que me pede objetividade,
Que demanda que eu respire fundo
E me acalme nas certezas
Que em verdade eu sei inconcretas –
Porém devo tornar palpáveis.
É um estranho balanço...
Eu sei que a vida é finita
E a morte inevitável;
Sei que amo a vida
E quero gritá-la
E gritá-la
E amá-la,
Mas se não me convenço que vivo
Ainda agora –
Mais um pouco,
Outro pouco
E mais outro –,
A vida se me despedaça
E eu apodreço em desespero desenfreado;
Se me desequilibro,
Temo que tudo esteja terminado
E aí de que vale uma vida
De horrores aglutinados?
Eu já flertei com a morte...
Seria mentira dizer
Que em seus braços nunca dancei.
Quando o amor que eu achava que tinha
E me sustinha
Não pôde me comparecer,
Eu a desejei.
Eu era frágil, tão frágil,
E os horrores que assombram a vida
Tão mais facilmente podiam me derreter.
Em seu consolo eu me entretinha
E cria que seu abraço poderia me satisfazer.
Quanto engano...
No dia em que ela veio
Eu me vi ainda mais horrorizado
Do que por quaisquer dores
Que a vida até então me dera.
Lembrei de todos os temores
Que da morte enfrentei
E entendi quão grande é o dote
Que a vida me ofereceu.
O que sempre desejei, afinal,
No meu flerte constante
Foi o silêncio,
Tão tristemente confundido
Com a absoluta quietude.
O que quero é o som de nada
Reverberando em tudo.
Eu quero a paz que me desnude
E grude no corpo
Até infiltrar meus poros
E me ser inteiro –
Não! Quero que brote de dentro
E vaze dos poros
E rasgue minhas vestes
E me desnude de dentro pra fora
E me seja por inteiro.
Mas quero que seja em silêncio
Sem o viés passageiro
Das alegrias.
Eu quero a paz que me tome
Na leveza do nada
E me faça esquecer
Todo anseio.
Eu quero que o 'quero' me suma
E em seu lugar 'eu' se faça
A doce vontade do nada
E o seu descansar verdadeiro.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

A Palavra dos Justos

Vinde a mim o vosso reino
E as riquezas ocultas
Que nele esgueiram.
Vinde pela luz
Lançando a escuridão em sombra
Sobre a beira do caminho.
Que sejam, então,
Benditos os teus frutos
E que apodreçam em silêncio
Os caroços duros que descartes.
Bendita a Palavra
E o Seu poder;
Bendita a espada
Em que jaz a língua
Mas também os olhos
E seu corte.
Bendita a guerra em Teu nome
Mas bendita a paz
Em que se consome.
Bendita a fome -
A de Ti
Mas a que a Ti move.
Vinde a nós os fracos
E os oprimidos -
Aqui se dorme o sono dos justos;
Ou, pelo menos, aqui se dorme.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

DesConto

O que estou dizendo?
O que estou fazendo?
Quem estou contando
Nesse conto anacrônico
Que narro com as garras
Arranhando a superfície da realidade -
Me agarrando à superfície da realidade?
Que estou fazendo? Que estou fazendo?
Que estou fazendo comigo
Quando conto de coisas
Que não me são,
Só me são por tabela
Num encontro tardio
Que se rebela de mim
Encardido na culpa do atraso
E me devora a calma?
Que estou sendo
Na gruta do meu enredo
Enveredado por ruas onde me desconto?
Que estou sendo além de desencontro?

quarta-feira, 26 de junho de 2019

A Caveira Colorida

Conta-me as tuas verdades!
Se quiseres conto as minhas primeiro.
Mas logo aviso:
Elas são perigosas.
São destruidoras de lares
E seus confortos;
São inimigas da própria verdade
Num conflito interno
De se inteirar em paradoxo
Que pode corroer tuas entranhas
E derreter tua mente.
Porém, se te sentes pronto
Para o deserto em sua vastidão,
Vem ouvir o sopro das dunas
No canto frio da lua.
Logo vês que pinto uma imagem de beleza
Para adornar o rosto
Das minhas palavras.
Pinto-as com cores vivas
Como a uma caveira
No Día de los Muertos.
Minhas verdades são, afinal, de morte;
Violentas por natureza;
Elas pregam os sentidos ao seu vazio
E os deixam ali, acometidos de fim.
Elas dizem que os significados
Não são intrínsecos à vida
E enxergam as falhas
De todas as outras verdades
Que as ousam contraditar.
Minhas verdades são cruas
E até cruéis
Quando tiram de ti a magia
E te negam a razão
Notando em ti o irracional
E a torpe pequenez do explicável
Em linhas curtas
Que vão do nascer ao morrer
E pairam no interior
De todo e qualquer humano
Que nessa Terra tentou se significar.
Minhas verdades veem a linguagem
Que se acredita completa
Nas falas inconcretas
Com que te enganas;
Elas enxergam o vazio
Enorme e devorador
Desse nosso Universo em silêncio
E angustiante torpor.
Minhas verdades são o próprio medo
Que acomete as mentes
De tempos em tempos
Quando mergulhadas no animalesco primal;
Quando se questionam
Por que não há motivos a nos guiar.
Minhas verdades são pouco gentis...
Mas eu as pinto de cor
Não só para facilitar sua dor;
A tinta não é só a bruta cobertura do nada:
Ela é a própria compreensão
De que o valor é a casca que construímos
Como bem entendemos
Sobre a brancura do crânio.
É a verdade que diz
Que o sabor da vida
Está na criação
Do que quer seja a nossa intenção;
Está no colorir desimpedido
Em que nos iludimos,
E na aceitação da ilusão
Não como algo vazio e obscuro,
Mas sim como o brilho da existência -
O sopro do próprio mundo.
As minhas verdades não são para todos, eu entendo.
Portanto rescindo-as ao deserto
Onde fito a imensidão do silêncio
Sabendo das estrelas:
De suas mortes distantes que ainda reluzem.

terça-feira, 25 de junho de 2019

O Brilho da Soberba

Eu me quero tanto;
Me vejo tão mais
Do que por enquanto;
Me encanto de mim
A tal ponto
Que me perco do meu ser
Como Ícaro
Decadente rumo à realidade.
Pois, tal qual o príncipe alado,
Sou também dotado
De asas grandes
Com as quais a vida me adornou,
Mas às vezes me esqueço
Que a vida é um melado
Do qual se me colou;
A minha vida é um meu punhado
De influências e vivências
Num meu mundo isolado
E, no entanto, tão mais tocado
Pelos outros que me formaram.
Eu sou o cruzamento
Da minha pequenez
Com os meus contatos
E só por eles me formei tão informado,
Só por eles me disponho em altivez.
Eu não sei de tudo;
Eu nada sou;
Eu sou um casulo encontrado
Que voa apenas na altitude
Pra qual a vida lhe formou.
Se quiser voar mais alto
Que reforme o meu estado
Com a humilde consciência
Do quanto só graças à vida
Sou o que sou.

sábado, 22 de junho de 2019

Entre o silêncio e o Orgulho


Eu já participei inúmeras vezes da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Mais vezes do que consigo lembrar. Minha primeira foi em 2008, escondido da família. Na época morava na capital, mas voltava para a casa dos meus pais no interior todo final de semana. Quando disse que iria para São Paulo mais cedo no domingo, tive que negar que era em função dela. Eu já era assumido para todos os meus amigos – e, se formos sinceros, a minha família também já sabia a verdade –, mas o ato político de celebrar a minha homossexualidade abertamente junto à minha comunidade era um gigantesco tabu. Eu devia fazê-lo em segredo.
Ao longo dos anos fui me abrindo cada vez mais, aceitando a minha existência e aos poucos conquistando meu espaço, assim como o movimento fez. Comecei a me sentir cada vez mais em casa ali. Aprendi que as críticas à Parada vinham de todos os lados. Mas, fossem religiosos chamando-a de “perversão”, supostos aliados dizendo que uma “festa” não é uma “manifestação política de verdade” ou até mesmo gays conservadores alegando que o evento “mancha a reputação” da comunidade, corria por baixo de todos esses discursos uma ideia em comum: esse não é o jeito certo de fazer as coisas. Não é a forma correta de ser.
É curioso observar o mundo quando enxergamos esse pensamento subjacente. Sim, as coisas mudaram, mas em muitos aspectos ainda são exigidos hoje os mesmos silêncios que eram requeridos ontem. Eu ainda recebo olhares tortos na rua por meu jeito afeminado. Ainda sou julgado e diminuído por gente que conheço no dia a dia em função disso. Quando discuto direitos LGBT, dizem que só falo sobre isso (o que não é verdade): é melhor evitar o tema. Em nome da convivência harmoniosa, muitas vezes me ponho de volta no armário, apagando completamente o aspecto sexual e amoroso da minha vida para não criar conflitos. Sermos diferentes é justamente o que nos torna LGBT, mas para sermos aceitos ainda se exige de nós que essa diferença seja ocultada, que permaneça o máximo possível dentro do padrão. Quem foge a essa norma é silenciado de outras formas…
Isso não é exagero. A quantidade de jovens LGBT que vejo hoje passando pelas mesmas dificuldades que enfrentei com a minha família quando eu estava me descobrindo, e ainda mais aqueles que enfrentam coisa pior, sendo expulsos de casa e marginalizados, mostra que, enquanto sociedade, ainda estamos longe de aceitar de fato a diferença. E mesmo quando não há rejeição explícita, muita gente cria “bolhas” de aceitação onde parentes ou amigos(as) LGBT são encaixados numa lógica pela qual são tolerados mas nunca entendidos a fundo. O resultado é que, por não nos conhecerem de verdade, muitos continuam carregando estigmas a nosso respeito, e assim formam imagens distorcidas sobre nossa luta. Vide as eleições de 2018.
Eu sei que essas são questões complexas. Sei que mudanças são sempre lentas e graduais. Inclusive entendo que muitas vezes o que é, aos meus olhos, uma transformação minúscula exigiu grande esforço de quem mudou. Sei que lidar com o diferente pode ser difícil. Mas é necessário. E é exatamente por isso que a Parada continua sendo tão importante. Ela é um eterno lembrete de que a diversidade é uma coisa boa, que deve ser celebrada. É um constante alerta para sairmos da zona de conforto em nossos relacionamentos com parentes e amigos, para tentar aprender o que realmente significa ser LGBT com aqueles ao nosso redor que vivem isso na pele. É uma declaração em defesa da igualdade nas diferenças à qual aspiramos. E, para nós LGBTs, é um evento onde resgatamos a nossa confiança interior para continuar transformando o mundo.
É em nome desse espírito que decidi escrever esse texto. Há alguns anos vou à Parada sem precisar me esconder ativamente, como fiz onze anos atrás. Mas assumi muitos silêncios em nome da convivência ou do convencimento paciente a longo prazo. E por mais que isso não seja de todo ruim, às vezes é necessário enfrentar o medo e dizer em alto e bom som: eu sou diferente e tenho direito de sê-lo. Eu sou gay e estarei na rua com a minha comunidade nesse domingo. Faço isso não só pelo jovem que fui onze anos atrás, que precisou silenciar para poder lutar, mas também por entender que onde estou hoje torna imperativo que eu me manifeste em apoio àqueles que ainda não conquistaram essa e outras liberdades. Ser livre, afinal, é o cerne da nossa batalha; é o verdadeiro significado do nosso Orgulho.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Vibrato

Notas que oscilo
Em tons que vacilo
Um vibrato acidental.
A câmara é obscura,
O coro é puro
No eco que gruta
As colunas em som.
Eu sou a eterna caverna,
Catedral do terreno,
Que me inferno
Em cores de cor
Como um mantra
Redesenhado
Mil e uma vezes
Por sobre as paredes
E nunca vislumbrado.
Eu sou a voz que adentra
E penetra em tinta
A glote esponjosa
E se aloja
Para o solo contemplo
Da escuridão.
Eu sou a carne
Que o tempo ditou
E dita em retorno
O tremer da imensidão.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

O Lírio do Dragão

O lírio do dragão
Vermelho e amarelo
Franze
Colorido
O seu possante olhar
Furioso e multicromático
Mas
É só um lírio

domingo, 16 de junho de 2019

O Pensador Mágico

(Madonna - Extreme Occident)

É subjetivo.
Bastante subjetivo.
Dolorosamente subjetivo.
Mas é melhor que assim seja.
Sendo tudo tão quebrantável,
Ironicamente tem mais sentido
E fica mais fácil se apoiar
Com a delicadeza que o equilíbrio requer.
Fica claro o que antes era só subliminar:
A fragilidade escondida
Nas vozes duras
De ideologias menos maduras
E pensamentos mais solitários
Apesar de, outra vez contraditório, menos isolados.
O cinismo romântico é a minha sensatez
De quem acredita a fundo
Sabendo que minha crença
É nada mais que isso:
Crendice.
A mente, afinal, é essa estrutura
Que se precisa na magia
Mesmo quando entende
Que ela própria é a sua ilusionista.
A ironia maior da vida
É esse encontro
Que soa como perdição
Aos ouvidos desatentos;
Que treme no profundo
Balançando suas estruturas
E até teme o fim de tudo
No rugido do tempo
Mas não se destrói.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Difícil

É difícil acreditar
Que possa haver poesia
Onde a mente resfria
E se medita contemplativa
Na calmaria,
Mas é importante tentar.
É difícil acreditar
No amor
Quando se distancia o suficiente
Para enxergar as limitações
Que amar impõe
Sobre a compreensão de si
E da própria conexão
A que se atribui tal fantasia.
Especialmente difícil
Na sociedade do desvínculo
Em que o indivíduo é o monólito
Sobre o qual se edifica
A Igreja do futuro,
Fria e produtiva,
Idealizada no aperfeiçoamento pessoal
Em que nos escolhemos
Em nome do equilíbrio
Em oposição ao outro
E suas próprias atribulações,
Trombando apenas quando necessário
Para a automanutenção.
Não que isso seja uma crítica -
Amo ser o indivíduo
Que me construí
Na vida que escolhi
Dentre os moldes que se me ofereceram.
Amo o distanciamento
E a tecnicidade
Que o meu pensamento adquire
Quando estou saudável...
Mas me vejo forçado a questionar a essência
Da ideologia que em nós há se instaurado
Em nome dessa nossa condição,
Ao menos para lembrar
Que também ela é construção
E pode ser que em breve
O futuro nos exprima
Dessa crença a contradição,
E então seja necessário
Desfazê-la em outra coisa
Meio líquida
Como a solidez da vida
Sempre requereu.
É difícil...
O amor me era tanto
E hoje soa tão pouco e doente,
Como se de repente
- Apesar de anos em processo -
Aquele cerne no qual era tão crente
Tivesse evaporado
E eu, então, tivesse me encontrado
Numa nova versão
Que o Eu passado sequer reconheceria
Se a tivesse cruzado.
Talvez, enfim,
A poesia agora esteja no translado,
Na paciente observação
Das margens a viajar
Vagarosamente para trás
Enquanto o Eu flutua inadvertido
Num sentido difuso
Que não se propositou
Mas no rio da vida se formou.
Talvez a fluidez da poesia seja, agora,
A rispidez das palavras brutas
Arranhando a borda do pensamento
Conforme desenha nele
Uma imagem impura,
Tal qual o material inconcreto
No qual ela se costura.
Difícil...
Mas a complexidade, na verdade,
Deixa tudo tão mais claro
Que difícil, afinal,
É acreditar
Que a poesia um dia esgota
Em suas formas de brotar,
Sendo que ela é infinita
E, conforme envelhece,
Se esconde melhor
Em significados mais graúdos.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Mudança

Eu adubei a minha muda
E cultivei
Num pequeno pote de cerâmica
Que rachou conforme cresceram as raízes
A expandirem
Dominando a varanda.
Entraram no apartamento,
Vazaram pela fachada do prédio,
Escorreram sobre a rua
E invadiram a praça;
Dominaram o mundo
Misturadas em outras fibras
De outras plantas
A se entrelaçarem
Num desenho sem nexo
Quase inorgânico e tubular,
Mecânico em sua estética aparentemente vazia...
Mas pulsando como uma jugular.
Não sei onde toca
A minha semente,
Onde afunda a minha corrente interminável
Sob a superfície da Terra.
Só sei que, de alguma forma,
Tudo começou na muda.

sábado, 1 de junho de 2019

Inanna-Ishtar

(Loreena McKennitt - Marco Polo)

Eis-me aqui,
Onde a areia cinde
Entre Tigre e Eufrates,
Mergulhado em deserto até o coração
Sem saber qual rumo
A jornada me requer
Em desnavegação.
Eis-me
Entre os poderes
Das pátrias passadas
E tantas quantas futuras ainda virão;
E me pergunto qual meu lugar
No jogo dos homens
Em arrebentação.
Eis-me
Distante da glória
Em transe profundo
Vivendo das coisas que enfim passarão;
E busco meu prumo
Antes que afunde
A embarcação.
Eis
Então
A estrela
Que rasga os céus
Com oito pontas de fogo
Queimando o deserto arenoso,
Transformando a Mesopotâmia em espelho
Onde o coração pode navegar sem os velhos anseios
Das crenças fixas de sexo, poder ou quaisquer outros freios.
Eis-ma Eu, transfigurada na língua dos céus em fluir de todas as rios.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Prelúdio

(Max Richter - On The Nature of Daylight)

Meu é o prelúdio
De tudo que vem e virá
Como veio
A tempo.
Meu é o canto
Da luz que incide
No primeiro brilho
Quando amanhece -
E quanto amanhece
A vida que há!
Meu é o lamento
Que magnifico
Na voz vibrando
A distante ecoar:
Ecoa nos vales
E nas montanhas,
Ecoa nos rios
E tanto mais lá;
Então reverbera
E volta tremendo
Em som sobre o corpo
E resfria escoando
No meu respirar.
Meu é o lamúrio
Que aceito -
Aceito no tempo;
Aceito no relento;
Aceito no alento
Em que me entrego
E me alegro
E componho.

sábado, 25 de maio de 2019

Oração

(Madonna - Like a Prayer)

Liberta-me
De ser redundante em minha oração;
De rezar os mesmos mantras
Que mandingo por mim
No lugar dos outros vícios
Em que me comprazo;
De ser ela subordinada
Aos velhos anseios
E sentimentos,
Porém também das palavras
Que se renovaram
Num ritual superficial
Em que me encerro desconflitada.
Liberta-me tu
Da paixão desgovernada
Que me humaniza enganada
Em crenças de ti;
Do amor que tu não controlas
Nem tampouco eu;
Faze uma magia do antiamor,
Uma poção amarga de cura
Para neutralizar em cinzas
No meu estômago.
Liberta-me Tu
De ser Deus
E ter de encontrar meus sentidos
Num mundo de silêncios e escuridão;
Liberta-me dos próprios sentidos
E me esplandece em descarne
Antes que o escárnio da vida
Me apodreça em terra.
Liberta-me Eu
Das vozes esguias
Pairando entre as frestas da mente;
Liberta-me como Eu soube fazer
Quando o mundo era puro
Entre as arestas da minha emoção -
Quando eu soube o quanto é duro
Manter o controle que tinha
E quase esquecia
O horror do turbilhão.
Liberta-me quem quer seja
- O amor, o temor, o ego, a poesia -
Da minha oração em transe
Repleta de compreensão
E completamente vazia.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Feminina

Tudo que eu sabia
Era natural ao mundo das meninas,
Mas o que eu não percebia
Era o quanto ao mergulhar
Na minha feminilidade
Eu não teria mais lugar
Na minha comunidade;
O quanto eu não saberia
Me comunicar
Com quem eu gostaria;
Quanto não conseguiria
Me conectar
Com quem desejaria.
Mas de forma nenhuma isso é culpa das mulheres.
Eu que as escolhi como porto seguro
E lar;
Eu que me deixo ignorar
O que não seja inteiramente feminino
No seu molde vernacular,
Que me permito me isolar
Dos meus
Em quem poderia ter um encontro
Se não mais, ao menos igualmente profundo.
É culpa minha
E dos meus,
Que não souberam adentrar
Suas feminilidades
Sem medo de se criar
Independente de tudo;
Não que eu os possa culpar:
O medo sempre em mim também se faz.
Eu fujo ao feminino que me é tão confortável
Por medo de não se me aceitar
Dentre meus iguais
Os meus sinais
De carência e dor
Que o isolamento traz.
Deve ser, no fim,
Que os bichos rejeitados
Sempre temem a rejeição
E se rejeitam mutuamente
Previamente -
Antes de se sujeitarem
A qualquer destruição...
O preço que afinal se paga
Pela sobrevivência
É a desconexão.

sábado, 11 de maio de 2019

Catedral Estrelada

Deveria haver um poema que resumisse o meu tudo.
Eu deveria ser seu autor.
Mas a minha poesia é feita de cacos -
Pedaços avulsos que raramente formam uma imagem completa,
Apenas fragmentos esparsos de um quadro maior.
Minha poesia são os instantes,
Os relapsos rompantes de sentimento agudo
Como uma fotografia clicada na fúria dos fins de Ato
Que condensam a vida num seu extrato
Sem mostrar do roteiro a química extra
Que moldou seu contralto.
Deveria haver um poema que me entendesse
E eu deveria ser seu autor,
Mas eu só me entendo em pedaços
Quando em frangalhos eu me esparramo no asfalto
E coleto meus trapos rasgados.
Só então observo suas linhas de perto
E examino meus percalços;
Um exame que só alcanço quando me rasgo.
E a tapeçaria completa, então, como fica?
Será que não posso me ler inteirado?
Será que ler meus fiapos sequer pode ser
O mesmo que me ler?
Não reside aí um problema humano
Do qual o poeta deveria saber fugir?
Que escritor é esse que pretende entender as humanidades
E não consegue sequer se enxergar inteiro
Para se descrever?
Será que mentem os artistas que fingem saber?
Pendo inevitavelmente a crer que sim.
A mim parece que os artistas remendam cacos
E eventualmente têm a sorte de um humano completo conceber.
Ou isso é só inveja de quem não o consegue fazer.
Inveja de quem permanece nas suas facilidades
E não quer se dar ao esforço de enfiar a cabeça
Debaixo das grades do portal
E enxergar o lado de lá.
A minha fraqueza é tal que os olhos não permitem
Transitar entre as formas de mim.
Eu não devo poder navegar nos meus tempos
Pois o deus tempo no passado me amaldiçoou
Com as dores da mente que me naufragaram
No mar das possibilidades perdidas.
Eu sou para sempre um semi-humano
Limitado pela cabeça que a vida me obrigou.
Eu sou para sempre humano demais para transcender
Como outros humanos souberam fazer.
Eu pêndulo entre tocar o divino e desvanecer
E na minha humanidade me confino
Oscilando na perda de tempo
Que é a vida a correr.
Eu me deprimo e me corroo
E não consigo me desenlaçar
Dos infinitivos superlativos
Das palavras rebuscadas e conflitivas
Que exprimem a minha condição
Descolada de mim
Sem entender como pode
Que eu me destrua
Se tão bem armada
A minha fachada eu fiz parecer.
Eu sou como a catedral estrelada
Cujos arcos são o céu
Vazio e alheio
Que eu quis me crer.

domingo, 5 de maio de 2019

Caldo

É exaustivo ser química -
Esse punhado de reações a se acumularem
No tempo e nos nervos
Se autoproclamando cognição.
É cansativo ser vida
E lutar contra os processos de putrefação.
A morte espreita em cada beirada,
Em cada desequilíbrio que o corpo falha
E ameaça fracassar...
A morte espreita em cada guinada,
Em cada curva violenta que a consciência
Finge controlar.
A vida se aflige
E reflete dentro de mim
Os processos que fora
Borbulham na imensidão.
E eu no meu caldeirão
Estou tão fora de mim
Que beiro a decantação.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Monotom

(Goldfrapp - Boys Will Be Boys)

Eu me pergunto se esqueci
Como se despeja emoção em palavras.
As pontas dos meus dedos parecem tão frias
Escorrendo em monotons sobre as linhas
Ao invés de transcorrer todo o espectro de verdades
Que outrora senti.
Talvez eu seja apenas um espectro -
Maturei tanto que nada mais me comove como antes.
Que delicioso engano seria me convencer disso.
Mas também não é verdade que me desconheci -
Não estou perdido de mim,
Desconectado do que sinto.
Apenas... Não sei o que sinto.
O que raios é isso?
Que diabos de locação é essa?
Será isso mesmo que vem com a idade?
Um torpor de quem já viveu o suficiente
Mas sente que não viveu?
Ou quem sabe esse seja o efeito de quem escolheu
Quais emoções se permitirá viver
Temendo as dores de emoções perigosas
Sem perceber tudo aquilo de que abre mão
Ao escolher esse caminho.
Mas não - não é só isso.
É tudo isso e mais um pouco.
É a minha razão temperada de mistério -
Um mistério sazonal que só nesse tempo poderia se fazer;
Mistério de quem se questiona
Buscando escapar do mais recente casulo
E sobreviver.
Eu sempre me lembro
Em algum momento
Que preciso sobreviver.
Eu sempre grito o rasgo da minha visão
E descoloro o mundo em nome da transformação,
Mas estou cansado.
Achei que já tinha superado as trocas de pele excessivamente doloridas.
Pelo visto ainda me restam tantas mudanças
Quanto anos de vida.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Aqui como em Roma

Não é que a História se repete -
Na verdade nada mudou.
Não me entenda mal: as coisas mudam
E as gerações dão sua cara
À narrativa que se conta,
Mas as coisas de fato
- Aquilo que importa -
Os sistemas,
O abuso,
As classes,
Os interesses mesquinhos,
A violência para perpetuar a roda,
O próprio tecido humano da História...
Isso não muda
E começo a crer que nunca mudará.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Carnália

Tarde da noite os mantos me visitam
E se deitam no meu entorno
Estendendo as mangas sobre meus olhos
Quase translúcidas.
A lua brilha quente debaixo das pálpebras
Uma luz vermelha semicerrada
No primeiro portal
(Onde os vultos esgueiram
E se escondem em relances)
Que se fecha aqui
Para abrir acolá.
Os mantos me abraçam
Em águas do Styx
E escoam rumo à esfinge
Enterrada em areias passadas
Paralisada na margem
Despida de suas asas.
Os mantos me drenam
A outra paisagem
E voam no vento a me cantar
De um futuro distante a ecoar
Nos uivos do medo e da perdição.
Os mantos me arpoam
À passagem da loba
E me amamentam de presente,
De entranhamento e devassidão.
Os mantos me falam -
Me desnudam e empalam
Embalsamado de tesão.
Os mantos me embalam
Embrulhado na última badalada
Que a noite provoca
Antes do sol me abrir a boca
E filtrar a areia
Fio por fio
Da memória.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Luz de Palco

(Nancy Sinatra - Bang Bang (My Baby Shot Me Down))

Eu alinho as taças com perfeição
E despejo o cabernet igualmente -
Olhando de frente a simetria é impecável.
A luz está baixa - ideal.

Eu alinho os traços com perfeição
E viro o cabernet regularmente -
Olhando no papel a simetria é impecável.
A rima está discreta - ideal.

Eu alinho os dominós com perfeição
E viro a reta discretamente -
Olhando no assoalho a simetria é impecável.
A queda está em suspenso - ideal.

Eu alinho as balas com perfeição
E limpo o cano silenciosamente -
A essa altura sinto que o meu controle não é impecável.
Sempre atiro o cristal
E deixo o tinto corroer o tapete
Depois sento com uma nova taça
E olhos frios de quem não sofre:
Está tudo normal.

terça-feira, 16 de abril de 2019

A Nova Flor

Eu me prometo
A nova flor da primavera
Que sabe das estações;
A flor etérea
Que não nega suas profanações;
A flor eterna
Em suas limitações;
A flor da loba
Que se entende caça
Quando viram as monções;
A flor resiliente
Que se sabe fraca
E se permite retroceder ao solo
Quando o inverno vem;
A flor que cicla com as luas
E se espelha nas marés;
A flor que, em seu caule,
Terrena se entendeu.

sábado, 6 de abril de 2019

Cólera

Todo dia eu devo
Me convencer de quem sou
E tem dias em que não consigo.
Todo dia eu devo
Os meus erros
E tem dias em que os acertos
Não cobrem minha dívida.
Todo dia eu devo
Erros passados que não têm pagamento
E nalguns dias ainda assim
A vida vem me cobrar.
Todo dia eu devo
Um ombro que nem sempre posso dar
E nalguns dias devo o corpo inteiro
De tanto ombro a me doer
Por me doar.
Todo dia eu devo
Este meu corpo à minh'alma
Mas alma é corpo
E eu não consigo me inteirar.
Todo dia eu devo
À minha vida
O melhor de mim
Mas tem dias em que o único sacrifício que consigo ofertar
É o meu pior
Que ofereço em contrição
Tentando crer que noutro dia
Eu serei melhor a mim.

O Segredo da Busca

Eu nada busco -
Já não acredito em buscas como estilo de vida -,
Mas o tempo tem um jeito de passar
Que as vezes me engana
Mergulhando a mente num caleidoscópio de emoções
E eu me convenço que preciso de um sentido.
Eu nada busco,
Mas a busca é uma história tentadora demais
Para não ceder a eventualmente me contar -
É um remédio delicioso demais para não tomar
Como se a vida fosse algo que precisa de cura -
Como se o anseio da busca não adoecesse
Quando rebate no fundo de um poço vazio
Que se cavou crendo em águas profusas.
Eu nada busco,
Mas desejo buscar
E esse desejo maldito ainda não sei tratar -
Se aceito como sintoma da vida
Ou extirpo de mim como resquício do vício que preciso deixar.
Ainda não tenho respostas,
Mas vou buscá-las nalguma epopeia misteriosa
Que não seja a minha história
Mas que eu permita me narrar
Antes de abandonar.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Diversos

A cada vinte horas morre uma pessoa LGBT no Brasil
Em decorrência do preconceito.

A cada vinte horas
Morre
Uma pessoa
LGBT
No Brasil
Em decorrência do preconceito.

Vinte horas:
Uma lésbica.
Vinte horas:
Um gay.
Vinte horas:
Uma bissexual.
Vinte horas:
Uma transexual.
Vinte horas:
Uma travesti.

Quanto tempo dura a tolerância no Brasil?

sábado, 23 de março de 2019

Dança do Espelho II

(Madonna - Frozen)

Anos atrás pedi ao Universo um espelho
Onde pudesse mergulhar
Para me enxergar mais inteiro.
Hoje escrevo apenas para constatar
O quanto é engraçado perceber
Que o espelho já estava lá
E foi em sua superfície que escrevi meu desejo.
O que me faltava
Era tão somente o olhar
De quem é experiente na arte de mergulhar
Nas palavras e suas pessoas.

sexta-feira, 15 de março de 2019

O Navegante e o Furacão

(Escrita em 09 de Março de 2019)

Passamos, ao longo da vida, por muitos momentos definidores. Gosto de acreditar que somos um punhado de microescolhas a se acumularem no tempo, mas é inegável que de vez em quando vivenciamos uma ou outra experiência com o potencial de transformar intensamente a nossa jornada. Ou, no mínimo, são encruzilhadas que testam o limite da nossa capacidade de lidar com mudanças, e com isso acabam nos contando algo sobre nós mesmos. O mais recente desses tais momentos que enfrentei foi a chegada à faculdade.
Estava muito nervoso. Sentia o coração palpitando por todo o corpo: o pulmão parecia inchado, a respiração trêmula, os braços faziam um grande esforço para disfarçar uma postura natural - como se não estivessem rígidos na tensão da tranquilidade simulada - e as pernas, meio bambas, tentavam manter a compostura. Por dentro, tudo gritava o turbilhão de quem mergulha pela primeira vez numa vida nova - um ambiente diferente, cheio de gente desconhecida e lugares inexplorados. Por fora, tentava fazer pose de despreocupado. Mas essa era uma daquelas circunstâncias em que, dada a bagunça interior, dificilmente se consegue controlar o que o corpo fala. Quem sabe parecesse frio ou sério demais. Porém - e isso é o mais provável -, talvez sequer conseguisse esconder qualquer coisa: estava nervoso e era evidente.
Mas o medo não era de todo ruim. Havia nele um elemento de desbravamento, uma essência de descobridor português que, a bordo da nau, enxergou a terra-mãe uma última vez e se virou audaciosamente para fitar a imensidão do mar. Eu temia o mundo por desejá-lo, sem saber o que meu anseio encontraria no horizonte, e esse sentimento me dizia para vasculhar a vastidão do Oceano à procura de um porto escondido onde me ancorar. Convenci-me, então, a levantar os olhos. Fi-lo silenciosamente, como quem examina um espaço à procura de conhecidos ainda não encontrados, tentando se encaixar num olhar certeiro, que combina com o seu próprio, enquanto desvia dos outros, que lhe negam pertencimento.
Achei! Ele estava perto dos arbustos, mochila nas costas, cigarro numa mão, celular na outra, o rosto fixado na tela com o mesmo semblante que eu próprio carregava uns segundos antes... Usava roupas próximas ao meu gosto, tinha um corte de cabelo similar ao meu (talvez nem tanto, mas a essa altura já intentava nos astros o desenho das nossas igualdades)... Expressávamos identidades semelhantes. Desejei falar com ele. Desejei muito. Mas meus pés não se moviam; a boca se mordia. Talvez fôssemos excessivamente parecidos e isso fosse uma coisa ruim. Talvez nossos assuntos pendessem inevitavelmente ao trivial e curto, sem o poder de aprofundamento discursivo que invejo e desejo em outras pessoas, e acabasse pairando no ar um silêncio de frustração. Por outro lado, talvez fôssemos, na verdade, diferentes demais, e se eu mergulhasse a fundo em um assunto alheio ao seu interesse... Frustração novamente. Acabei cedendo ao lado negativo do meu medo - em vez de desbravador, permaneci ilhado.
Caminhei cabisbaixo em minha derrota interior rumo à sala de aula. Tinha ainda a polvorosa de sentimentos fervilhando dentro de mim, mas já não me cria capaz de procurar uma abertura. Talvez eu estivesse fadado a ser um navegador perdido no Triângulo das Bermudas. Foi quando, de súbito, me abordaram perguntando qual era minha turma. A resposta me saiu com quase a mesma velocidade em que emendei nela uma pergunta de reciprocidade, e depois outra, e mais outra. As palavras começaram a me saltar da boca como se eu fosse um furacão que estivera silenciosamente preso dentro de um balão: bastava uma cutucada para estourar e cobrir as Bermudas por inteiro - e junto com elas todo o Caribe. De repente me sentia capaz de conversar com qualquer um, até mesmo com ele com quem antes desejara falar porém não conseguira. Descobri, inclusive, que de fato temos muitas semelhanças.
Mas descobri também - e isso é mais importante - que a abertura muitas vezes se cria em vez de procurar. Não sei contar quantas pessoas encontrei depois disso na mesma posição em que há tão pouco tempo me encontrara; quantos furacões em balão tive coragem de furar. Nem sempre consigo fazê-lo, mas o medo vai sendo aos poucos enfrentado. Afinal, aprendi nessa encruzilhada da vida que, no fundo, todos tememos da mesma forma - com um desejo receoso.

Tolice

(Maria Bethânia - Negue)

Não sei quem é mais tolo:
Eu, por acreditar
Em qualquer coisa que fosse
Escondida atrás do teu falar;
Por vender meu carinho
Tão barato na rua
Havendo em mim um poço tão fundo
Onde despejar meu próprio amor;
Por esquecer que esse profundo
Só eu sei sustentar;
Por me deixar vazar em excesso no mundo
E pagar sozinho a conta do furacão...
Ou você,
Por não entender a rota dos rios da minha vazão;
Por não saber o tão pouco e pequeno
Que eu cria que você sabia.
Não... Tolo sou eu.
Já vivi o suficiente para entender
Que o meu coração tensiona
Com força demais para sobrar espaço
Para a compreensão.
Eu compreendo.
Eu sei que o mundo é bruto
E rasga a carne de quem se mostra.
Eu sei que saber de amor
Não é pouco nem pequeno
- Me desculpe pela acusação;
Na verdade é uma construção
De anos seguindo um mesmo caminho
A partir de um ponto fixo
Que só eu conheço e conhecerei.
Amor, afinal, no genérico como o digo,
Não é nada generalista -
É o meu amor
Como os deuses quiseram que eu.
Eu entendo
E hoje sou forte o suficiente
Para não sofrer por me abrir
E dar de cara num muro;
Hoje atravesso muros e sigo em frente
Satisfeito com o fato que, por um segundo,
Desmaterializei tuas defesas
E aprendi você.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Bronze

Estou polido demais,
Parado
Num belo contemplativo
Distante e grego
Que nada passa, nada comunica
Ali, impassivo
Intimidante
Sem me prestar ao papelão de sangrar
Em nome do barro
E me remodelar;
Sem arrancar do olhar as travas da porta...
Sem entrega nenhuma.
Que beleza pode haver nisso?
Que admiração pode realmente existir no pedestal
Pedindo um beijo aos pés
Sem estender a mão
E se sujar de pele?
Eu quero ser sujo,
Quero ser imundo!
Quero ser enlameado de mundo grosso e escuro!
Quero falar sem medir as palavras milimétricas,
Que me entendam mal e profano,
Quero tocar com a malícia dos demônios sexuais
E devorar a terra
Com meus papéis carnais.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Vazão

(Julia Jacklin - Comfort)

Deu vazão.
Não sei por quê, mas deu.
Subitamente me senti fragilizado
Como há tempos não sentia
E não entendi
Se foi o livro que lia,
A música que ouvia
Ou só o sino que zunia
No meu templo
Em um tom doloroso.
Há algumas simetrias dos sentidos
Que simplesmente acontecem
E sua perfeição dói de chorar.
Não há o que fazer
Quando os astros se alinham
E deixam o céu vazio
Para todo o conteúdo se concentrar
Num ponto ínfimo
Onde sobra cor
Enquanto o resto do firmamento
Se confina à imensidão de ser.
Às vezes a vazão vem
Simplesmente pela observação;
Mas também só de constatar
O céu já se reilumina
O suficiente para suspirar,
Engolir o nó,
Secar os olhos
E voltar a sorrir
Um sorriso frágil e molhado -
Transparente.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Ode

Te dou uma ode
Vazia de significado.
Dou simplesmente porque quis dar
- E na verdade não entendo bem como funciona uma ode -
Mas parece algo belo,
Trovadoresco e bucólico,
Então vá lá: uma ode.
Honestamente nem sei
Qual o meu sentimento por ti;
Mal sei o teu nome,
Mas sinto a fome dos poetas
Que, na falta de um amor pra chamar de seu,
Buscam devorar todas as estrelas
E descê-las com uma entornada de Via Láctea
Pra assentar as borboletas aflitas
No estômago e nos dedos.
Talvez, enfim, o sentimento que tenho
Seja sozinho -
Mas não desse jeito tenebroso que pensas:
A solidão dos que se gostam
E se deliciam no silêncio.
Talvez o coração não saiba falar desse amor
Sem terceirizar as estrofes
E precise, então, de um toque de alheio
Pra soar mais preciso.
Mas não me entenda mal!
Não sou um Narciso que terceirizo meu amor.
O que tenho é um caminho
Por onde me infiltro
Pra encontrar os espíritos
Que me dão sabor,
E essa rota escondida
Desemboca em palavras
Que abraçam tua dor.
A ode que canto, afinal,
Talvez seja só um afago:
O pão que trago pra repartir
Dizendo "te entendo
E portanto eis-me aqui
Travestido de cancioneiro velho
Pra te fazer sorrir".

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

A Entrada

(Still Corners - The Trip)

Eu entrei
E você estava na minha cama.
E eu, então, entrei
Na minha mente
Procurando os teus sinais
Em qualquer canto que estivessem
Engavetados na minha negação,
Na conspiração corporal que aprisiona minha expressão
E com ela os sentidos -
Tato, ouvido, olhar, fala...
Menos o olfato -
O teu cheiro trai meu isolamento
E nele sinto minhas camadas em frenesi se derretendo.
Teu odor me faz querer crer
Que nosso afastamento é só defesa,
É só o conjunto de esmeros que ensaiamos
Pra exibir ao nosso entorno com proeza
E, enganando o mundo, nos enganarmos.
Tua surpresa desengana minha cegueira;
De repente eis teu corpo ofertado,
Tua beleza escancarada em desafio
Contra as dúvidas do meu conchavo
E eu creio, eu quase creio,
No nosso afago...
Mas me apago
Num nó
Entalado no desejo
Pois não confio nem no que creio,
Nem na cama,
Nem em mim.
Creio no teu cheiro e nada mais.
Creio que perdi o meu momento
E desviaste o olhar
Levando o corpo a outro lugar
E eu não entrei.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Gigante

(Zola Jesus - Wiseblood (Johnny Jewel Remix))

Eu me agiganto
Pra não me acabar.
Eu me amianto
Pois se só marmorizado em grafite
Eu ainda me parto
E a luz me arde
Como na primeira vez.
Eu me encanto
Pois enfeitiçado
O meu fado de sulfite
Fica mais resistente
Pra quem tente cantá-lo
E se livrar da embarguez.
Eu me acabo delicado
Como um bardo
Cujo conto descontente
Arrancou o arrebite
E soltou a dor no vento -
Ela, então, fundiu no som
E no eco rarefez.
Eu me banho
Nos rios dos gigantes
Pois mesmo tão pequeno
Às vezes sinto
E noutras tento
Ser gigante
Quer por mim ou por você.

sábado, 5 de janeiro de 2019

A Cabeça do Dragão

(Matsu Take Ensemble - Shirabe-sagahira)

Entra o moço na caverna cintilante
Do dragão negro e azul,
Assim chamada pois seu corredor
É uma garganta escura
Com milhares de luzes brilhantes.
O moço avança a passos lentos,
Temendo o tropeço e o fundo
Sabe lá se do mundo ou de si.
O caminho é estreito e o ar é turvo,
Forçando o pulmão ofegante
A alimentar rarefeito o sangue
Que corre na vista embaçada -
Talvez a visão esteja enganada.
Eis, então, uma pedra
Sobre a qual repousa uma gigantesca cigarra neon-azul.
- O que buscas aqui nas entranhas, meu jovem? - Ela pergunta sem cerimônia.
- Busco a cabeça do dragão.
- Ora, cá estou! Em que posso lhe ajudar?
- Mas tu és a cabeça? Como, se ainda vejo a garganta serpentear muito depois de onde repousas, e nem sequer estás fixada no restante do corpo?
- Quem foi que disse que a cabeça é um fim? Diga lá, qual tua verdadeira pergunta.
O moço, meio estonteado, decide aceitar
A premissa de bom grado, e então acode:
- Busco a razão de tudo, o verdadeiro profundo; o lugar onde reside, afinal, meu significado.
- Não acabo de dizer-lhe do desfim das profundezas, meu jovem? Aqui o túnel é infinito: se lhe buscares o encerramento é quase certo que te percas. Ainda não entendeste o que desde antes da pergunta te respondo: a cabeça não está em um fim.
O moço, perturbado, já não esconde seu estado:
- Mas então não há motivo na jornada? Não há onde chegue e contemple de tudo o resultado? Não há certo e errado? Onde me nortearei sem um norte fixado?
- E já não tens a si próprio guiado? Quem te trouxe aqui, se não tua busca? Procuras um caminho certo que leve ao desejo concretizado sem perceber que o desejo te fala concreto, em tua própria linguagem rimado! Temes a incerteza das infinitas possibilidades e crês nela um vazio, mas não percebes que nela mesma criaste a luz do teu caminho. Aqui na garganta vês brilhando o que podem ser pedras preciosas, vagalumes ou estrelas - dá-lhes o nome que queres: o que importa é que haja brilho, e que esse brilho tu vejas. A cabeça, meu querido, é o sentido que ensejas: estará onde for encontrada quando quiseres que assim seja.